quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Grama na sola do sapato


Otávio Nunes

O velho craque entrou no campo vazio e olhou para o estádio. Lembrou-se do tempo em que era aplaudido pela torcida. Cada bola roubada do atacante adversário rendia a ele várias palmas, assovios e apupos. Foi o maior zagueiro do seu tempo.

Pisou na bola e notou o material diferente. Não sabia se era de couro, ou não. Deve ser plástico, pensou. Pegou-a na mão e passou os dedos entre os gomos. Perfeita. Nem parecia ser costurada. Ou não era, mesmo. Pegou a bola, enfiou numa sacola de supermercado. Seria um bom presente para seu neto.

Ao passar na portaria, o guarda o revistou e chamou os demais seguranças, acusando-lhe de roubo. Sou Anselmo, o Paredão, o maior defensor que este time já teve. Ganhei 12 títulos, disputei duas copas do mundo. Você deve ter ouvido falar de mim. Não o conheço, não sou do seu tempo, respondeu o porteiro. Mas como o senhor é um velhinho simpático, deixarei ir embora, mas só leva a sacolinha de plástico e a grama na sola do seu sapato.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O que será que meu pé sonhou?


Otávio Nunes

Ontem, voltando para casa, sentado num banco de ônibus, com o corpo torto feito anzol e olhando o movimento das ruas, percebi que meu pé estava dormindo. Sensação esquisita. Parecia que um monte de agulhas estivesse me espetando ou um batalhão de formigas picando-me. Passou-me, então, pela cabeça. Será que, dormindo, meu pé sonhou? Sendo assim, o que ele sonhou?
Talvez ele quisesse estar em outro lugar, pisando em outras terras, outros países. Por ser extensão do meu corpo, é bem possível que, em seus contatos com o cérebro, seja conhecedor dos meus sonhos e minha vontade de largar esta vidinha besta, de pegar ônibus todo dia.
Coitado, meu pé deve estar cansado de caminhar sempre na mesma direção, sempre na mesma trilha. Quer conhecer outras plagas, sentir tipos diferentes de solos, como as areias do Saara, ou das praias gregas, pedregulhos dos Alpes suíços ou mesmo o limbo verde e escorregadio das montanhas da Bósnia, que circundam Saravejo, cidade maravilhosa, de tanta história e sangue. Meu pé bem que poderia estar sonhando pisar sorrateiro no tapete de folhas secas em volta das árvores grudadinhas, lado a lado, que tornam a Amazônia quase instransponível.
Meu querido dorminhoco estaria pensando em chutar o traseiro de políticos desonestos, demagogos e autoritários. O mesmo vale para qualquer cidadão que mereça tais adjetivos. Meu pisante (por que não?) deveria estar sonhando em chutar e conduzir a bola como os grandes do futebol. Jogar o mesmo que Pelé, Garrinha, Johan Cruyff, Franz Beckembauer, Diego Maradona, Michel Platini ou o deus magiar Ferenc Puskas.
Poderia meu pé ter sonhado que estava no estribo, cavalgando um manga-larga castanho, daqueles que relincham de forma estridente e bela. E, ao tocar o solo, emitem sons parecidos com as castanholas nas mãos de uma bela espanhola de Andaluzia. Ou talvez pisando no acelerador de um carro esportivo do ano, igual àqueles que passam nos comerciais de televisão, que custam valor inatingível à minha conta corrente.
Não sei o que meu pé sonhou. Mas ele sonhou. Tenho certeza. Afinal, é parte indissociável de mim.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Afogado em números


Otávio Nunes

Esta historinha idiota começou quando troquei de carro. Na negociação com o vendedor, dei meu veículo velho como entrada e completei o restante com minhas economias. Saí todo feliz da vida ao volante do meu carro novo, embora usado.
Logo depois parei no posto para colocar gasolina, pois as lojas têm o costume besta de vender carro com pouquíssimo combustível. Aproveitei para pedir ao frentista que também verificasse os níveis de óleo e água e calibrasse os pneus. Ao levantar-me para pagar pelo serviço, notei então a placa do meu novo carro e levei um susto. Os números eram iguais aos do meu automóvel anterior, na mesma ordem. As letras, não, claro. Se fosse tudo igual seria um clone, o que é ilegal. Meu Deus, que coincidência, pensei comigo.
Aqueles quatro números, nenhum repetido, começaram a modificar minha vida. Quase todo dia apostava a milhar no jogo do bicho, bem como as centenas e as dezenas formadas pelos quatro números. Os dias em que não conseguia jogar ficava com peso de consciência: “Será que vão dar meus números justamente hoje que não apostei?”
Cada vez que passava em frente a uma lotérica fazia também apostas nas diversas loterias de números. E ainda ficava olhando para as loterias de bilhetes a procura do meu número. A neurose era tão grande que às vezes tentava encontrar meu número em ruas e avenidas longas somente para ver que tipo de residência ou comércio funcionava no local. Olhava também placas de outros carros como se fosse possível achar mais uma igual a minha.
Por medo ou vergonha, não ousei contar a ninguém sobre a coincidência das placas, Minha mulher e meu filho nem notaram o fato. Ela, sempre distraída, e ele, muito pequeno para entender. No entanto, quando saíam comigo, eles viam algo de esquisito em mim , mesmo sem saber da minha paranóia com os quatro números. “O que você tanto olha nas ruas, querido?”, perguntava ela. “Pai, o senhor parece nervoso”, observava meu filho.
Dormindo ou acordado, vivia a sonhar com os números. A cada dia minha fixação crescia. Apostava em tudo, procurava pelos números em todo lugar. Rascunhava os algarismos em minha mesa de trabalho. Já estava dando na vista. Um de meus colegas de trabalho dizia: “Novamente, você e seus números. Está estudando matemática?” Até que ele tinha razão. Estava mesmo estudando análise combinatória pela internet. “Meu Deus, onde chegarei com esta mania?”, questionava.
Certo domingo, enquanto almoçava, formei os números no prato com fios de macarrão. Ante o olhar de surpresa de minha mulher, desfiz o horroroso arranjo. No vidro empoeirado do meu carro, desenhei os números. Na praia, escrevia os quatro na areia, como um Anchieta maluco. Todas as minhas senhas, de banco, internet, computador e outras, eram formadas pelos algarismos, mesmo quando tinha mais de quatro.
Pensei em trocar novamente de carro para me livrar da maldição dos números. Mas se trocasse seria por outro mais velho, pois não tinha mais economias, pois todo dinheiro que sobrava ia nas intermináveis apostas. E não ganhava nada. Minha superstição nos números era um fracasso total, uma tolice sem igual. Porém, não tinha forças psicológicas para romper definitivamente com aquela praga.
Num domingo pela manhã, quando voltava sozinho da casa de minha mãe, peguei intencionalmente um caminho diferente, por uma avenida longa. Iria rodar muito mais, gastar mais gasolina, somente para procurar meu número naquela avenida. E encontrei. Era um boteco. Parei em frente e aproveitei para tomar uma cachaça, no intuito de abrir o apetite para o macarrão de minha mulher.
Depois que bebi a pinga, os números apareceram na minha frente, dançando. Ora pareciam vestidos com camisas floridas, de turista americano no Havaí, ora de negro ou de branco, como pais-de-santo. Os quatro cantavam e zombavam da minha cara. Senti-me um idiota completo. Nervoso, balancei a cabeça, espantei os engraçadinhos e voltei para casa, com uma ideia resoluta.
Teria de romper totalmente com aqueles algarismos ingratos. Tanto fiz por eles, usei-os em tudo, fiz deles a razão da minha vida e em troca de tanta consideração me aprontam este papelão? Reduzem-me a nada. “Chega. Chega. Basta. Já me cansei de ser escravo de vocês”, gritei bem alto, dentro do carro. Era novamente um homem livre.
No dia seguinte, segunda-feira, pensei mais uma vez sobre o rompimento definitivo com meus quatro ex-amigos e achei que seria de bom alvitre dar mais uma chance a eles. Faria uma só aposta, com a milhar, no jogo do bicho. Se perdesse, como era de se esperar, teria a prova definitiva que aqueles quatro só me traziam azar, realmente. Depois, trocaria de carro, mesmo por um mais velho, mudaria minhas senhas, pararia de apostar. Enfim, esqueceria definitivamente aqueles imbecis.
E não é que a minha milhar deu no primeiro prêmio do bicho? Ganhei um dinheiro razoável, o suficiente para trocar de carro e pegar outro mais novo. Mas confesso abestalhado que estou em dúvida. Não sei se rompo com meus números. A não ser que eu encontre outro carro com os mesmos, novamente.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Serafim e seus filhos


Historinha baseada na música homônina de Ruy Maurity e José Jorge

- Papai, existem lobisomens?
- Não, minha filha.
- Então por que tem filmes na televisão que...?
- Filha, veja bem. Estas histórias são chamadas de lendas. Ou seja. Alguém inventa uma história, que será repetida para outras pessoas e outras e mais outras. Espalha-se. Mas, na verdade, são criadas por algum motivo, que na maioria das vezes a gente nem sabe. É a mesma situação que ocorre com a mula-sem-cabeça, saci, papai noel, vampiros e outros seres esquisitos.
- Então, porque inventaram o lobisomem?
- Tem pessoas que dizem que um homem transformava-se, em parte, em lobo, nas noites de lua cheia para pagar seus pecados ou então por praga de alguém. Não tenho certeza. Meu avô me contava uma história, que ele chamava de causo, sobre um lobisomem numa família.
- Como é a história, papai?
- Oh meu deus! É muito comprida e complicada. Não sei se você vai ter paciência.
- Pode começar.
- Está bom. Ouvi este causo várias vezes do meu avô, lá no interior, onde nasci. Coitado, ele já morreu há tanto tempo, muito antes de você nascer. Vou recordar a história de Serafim e seus filhos.
- Serafim?
- Sim, minha filha. Meu vô me contava que havia uma família de quatro homens e uma mulher. Eram o velho Serafim e seus quatro filhos: João Quebra-toco, Mané Quindim, Lourenço e Maria. Vovô me garantiu que conheceu a Maria, a única que sobreviveu das desgraças da família, quando tinha mais de 60 anos e vivia num asilo para velhos, esquecida de todos e do mundo. Meu avô trabalhou como faxineiro no asilo.
- O que é desgraça da família? E que o lobisomem tem a ver com a Maria?
- Desgraça é uma tragédia, acontecimento ruim. Muita coisa triste ocorreu com a família. Agora, quanto ao lobisomem, você tem de esperar o final da história.
- Mas...?
- Calma filha, vou tomar um café para aquecer a garganta e continuarei com a narração.
- Vai logo pai. Tô doida para conhecer tudo.
- Pois bem. Retomemos. Serafim era um fazendeiro viúvo, pobre e analfabeto. Não havia escola onde ele morava. Apenas Lourenço, o mais novo da prole...
- O que é isto?
- Ahn? Ah, sim. Prole? Prole é família. Então, vamos em frente, Lourenço era o único que sabia ler e escrever, embora muito pouco. Tinha aprendido com um padre que visitava a pequena cidade de vez em quando e lá ficava por algumas semanas, fazendo seus serviços religiosos, como missa, casamentos, batizados e outras coisas. Lourenço, que na época tinha mais ou menos quinze anos, gostou muito do padre e o visitava sempre, à noite, escondido do pai que considerava bobagem saber ler e escrever.
- Nossa! Pai!
- É verdade filha. Naquela época muitas pessoas pensavam assim. Infelizmente, até hoje tem gente com esta mentalidade. Mas o fato é que Lourenço, apesar da pouca idade, tornou-se o mais inteligente dos filhos. Sabia conversar, fazer contas complicadas, explicar quase tudo, lia livros de histórias para os irmãos e até escrevia cartas a pedido deles. Passaram alguns anos e Lourenço resolveu tomar uma decisão. Deixaria a família e partiria para bem longe, em busca de vida melhor.
- Certo ele, pai.
- Sim. Mas esta vontade foi a desgraça dele. O velho Serafim não gostou da idéia e exigiu que os outros filhos também não concordassem. “Filho meu não dança, conforme a dança.”
- Então, o que Lourenço fez?
- Não fez, minha filha. Apesar de pedir de joelhos que o deixassem ir embora, de nada adiantou. Ele jurou então que, qualquer dia, sem ninguém perceber, iria fugir. Naquele mesmo dia, à noite, o velho Serafim reuniu os quatro e disse que iriam para a floresta caçar capivaras e queixadas, o que faziam uma vez por mês.
- São bichos, pai?
- São. A capivara é parente do rato, porém bem maior e vive perto de rios. Já o queixada é da família do porco, mas é selvagem. Dizem que os dois animais têm carne saborosa. Mas hoje em dia é proibido caçar estes bichos e outros que vivem em florestas.
- Minha professora disse que a gente tem de preslevar os bichos.
- É preservar, filha. Preservar, quer dizer mantê-los vivos. Continuemos com a história. Nesta parte, meu vô contava: “Noite alta de silêncio e lua, Serafim o bom pastor de casa saía. Dos quatro meninos, dois levavam rifles. Outros dois levavam fumo e farinha”. Ainda neste pedaço de história, vovô, que viveu três anos na Bolívia, dizia assim: “Bandoleros de los campos verdes. Dom Quixotes de nuestro desierto”.
- Que língua é esta?
- É Espanhol.
- Que quer dizer?
- Não tenho muita certeza. Mas fala de pessoas que se aventuram na vida como Dom Quixote.
- Quem...?
- Já sei. Dom Quixote é o mais famoso personagem de livro do mundo. Ele foi criado por um espanhol chamado Miguel de Cervantes, um dos homens mais geniais que pisou neste planeta. Dom Quixote é um velho sonhador que luta contra inimigos invisíveis. Quer dizer, é um sonhador em busca de explicações para sua vida. Ou algo assim. Eu acho que Dom Quixote pode ser tudo, sonho ou realidade, depende da interpretação de cada um de nós.
- Acho que já ouvi falar dele. É aquele que anda a cavalo com uma lança na mão?
- Ele mesmo, junto com amigo Sancho Pança, na verdade um empregado, chamado escudeiro. Mas vamos continuar. Naquela noite alta, de lua mansa, os quatro mataram Lourenço. Maria não soube explicar por que. No entanto, havia atirado duas vezes no irmão. João e Mané, uma vez cada. O pai não teve coragem de puxar o gatilho. Esconderam o corpo e voltaram cabisbaixos para casa. Nem foram caçar.
- Pai, é muita ruindade.
- Verdade filha. O ser humano é capaz de coisas ainda piores.
- E o lobisomem?
- É agora. Maria contou para meu avô que Lourenço se transformou em lobisomem porque seu corpo não foi enterrado.
- Nossa pai, que história comprida.
- Estamos no fim. Se você não me interromper muito, termino logo.
- Huum...
- Pelo relato de Maria, ela foi a primeira vítima do irmão morto. O lobisomem Lourenço apareceu para ela, certa noite, e rogou uma praga. Disse que Maria ficaria grávida e teria um filho peludo, com dentes de cachorro. Realmente, ela ficou grávida, sem ter nenhum relacionamento com homem, garantiu a meu avô. Serafim, ao ver a filha naquele estado, expulsou-a de casa e ela se tornou prostituta, mulher que vende o próprio corpo aos homens. Porém, seu filho jamais veio ao mundo. Sua barriga murchou até voltar ao normal. Maria teve vários homens na vida. Mas nunca se engravidou. Os irmãos Mané Quindim e João Quebra-toco foram abordados pelo lobisomem, também à noite, numa lua cheia, e desmaiaram de medo. O primeiro morreu na hora e o outro agonizou três dias até perder a vida, também.
- Caramba, pai. O que aconteceu com Serafim?
- No final, até hoje não entendi bem, meu avô encerrava a história com a seguinte frase: “Serafim, depois que viu o filho lobisomem, perdeu o juízo e morreu sete vezes, até abrir caminho pro paraíso”.