segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Afogado em números


Otávio Nunes

Esta historinha idiota começou quando troquei de carro. Na negociação com o vendedor, dei meu veículo velho como entrada e completei o restante com minhas economias. Saí todo feliz da vida ao volante do meu carro novo, embora usado.
Logo depois parei no posto para colocar gasolina, pois as lojas têm o costume besta de vender carro com pouquíssimo combustível. Aproveitei para pedir ao frentista que também verificasse os níveis de óleo e água e calibrasse os pneus. Ao levantar-me para pagar pelo serviço, notei então a placa do meu novo carro e levei um susto. Os números eram iguais aos do meu automóvel anterior, na mesma ordem. As letras, não, claro. Se fosse tudo igual seria um clone, o que é ilegal. Meu Deus, que coincidência, pensei comigo.
Aqueles quatro números, nenhum repetido, começaram a modificar minha vida. Quase todo dia apostava a milhar no jogo do bicho, bem como as centenas e as dezenas formadas pelos quatro números. Os dias em que não conseguia jogar ficava com peso de consciência: “Será que vão dar meus números justamente hoje que não apostei?”
Cada vez que passava em frente a uma lotérica fazia também apostas nas diversas loterias de números. E ainda ficava olhando para as loterias de bilhetes a procura do meu número. A neurose era tão grande que às vezes tentava encontrar meu número em ruas e avenidas longas somente para ver que tipo de residência ou comércio funcionava no local. Olhava também placas de outros carros como se fosse possível achar mais uma igual a minha.
Por medo ou vergonha, não ousei contar a ninguém sobre a coincidência das placas, Minha mulher e meu filho nem notaram o fato. Ela, sempre distraída, e ele, muito pequeno para entender. No entanto, quando saíam comigo, eles viam algo de esquisito em mim , mesmo sem saber da minha paranóia com os quatro números. “O que você tanto olha nas ruas, querido?”, perguntava ela. “Pai, o senhor parece nervoso”, observava meu filho.
Dormindo ou acordado, vivia a sonhar com os números. A cada dia minha fixação crescia. Apostava em tudo, procurava pelos números em todo lugar. Rascunhava os algarismos em minha mesa de trabalho. Já estava dando na vista. Um de meus colegas de trabalho dizia: “Novamente, você e seus números. Está estudando matemática?” Até que ele tinha razão. Estava mesmo estudando análise combinatória pela internet. “Meu Deus, onde chegarei com esta mania?”, questionava.
Certo domingo, enquanto almoçava, formei os números no prato com fios de macarrão. Ante o olhar de surpresa de minha mulher, desfiz o horroroso arranjo. No vidro empoeirado do meu carro, desenhei os números. Na praia, escrevia os quatro na areia, como um Anchieta maluco. Todas as minhas senhas, de banco, internet, computador e outras, eram formadas pelos algarismos, mesmo quando tinha mais de quatro.
Pensei em trocar novamente de carro para me livrar da maldição dos números. Mas se trocasse seria por outro mais velho, pois não tinha mais economias, pois todo dinheiro que sobrava ia nas intermináveis apostas. E não ganhava nada. Minha superstição nos números era um fracasso total, uma tolice sem igual. Porém, não tinha forças psicológicas para romper definitivamente com aquela praga.
Num domingo pela manhã, quando voltava sozinho da casa de minha mãe, peguei intencionalmente um caminho diferente, por uma avenida longa. Iria rodar muito mais, gastar mais gasolina, somente para procurar meu número naquela avenida. E encontrei. Era um boteco. Parei em frente e aproveitei para tomar uma cachaça, no intuito de abrir o apetite para o macarrão de minha mulher.
Depois que bebi a pinga, os números apareceram na minha frente, dançando. Ora pareciam vestidos com camisas floridas, de turista americano no Havaí, ora de negro ou de branco, como pais-de-santo. Os quatro cantavam e zombavam da minha cara. Senti-me um idiota completo. Nervoso, balancei a cabeça, espantei os engraçadinhos e voltei para casa, com uma ideia resoluta.
Teria de romper totalmente com aqueles algarismos ingratos. Tanto fiz por eles, usei-os em tudo, fiz deles a razão da minha vida e em troca de tanta consideração me aprontam este papelão? Reduzem-me a nada. “Chega. Chega. Basta. Já me cansei de ser escravo de vocês”, gritei bem alto, dentro do carro. Era novamente um homem livre.
No dia seguinte, segunda-feira, pensei mais uma vez sobre o rompimento definitivo com meus quatro ex-amigos e achei que seria de bom alvitre dar mais uma chance a eles. Faria uma só aposta, com a milhar, no jogo do bicho. Se perdesse, como era de se esperar, teria a prova definitiva que aqueles quatro só me traziam azar, realmente. Depois, trocaria de carro, mesmo por um mais velho, mudaria minhas senhas, pararia de apostar. Enfim, esqueceria definitivamente aqueles imbecis.
E não é que a minha milhar deu no primeiro prêmio do bicho? Ganhei um dinheiro razoável, o suficiente para trocar de carro e pegar outro mais novo. Mas confesso abestalhado que estou em dúvida. Não sei se rompo com meus números. A não ser que eu encontre outro carro com os mesmos, novamente.

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