quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Previsões alvissareiras para 2010


- Brasil será hexacampeão mundial de futebol
- Elegeremos um bom presidente (cada um vota no seu)
- Minha filha vai passar de ano e criar juízo
- As lojas vão parar de vender porcaria chinesa de 1,99
- O Brasil vai voltar a fabricar guarda-chuva
- Vou trocar de carro
- Político picareta não será reeleito
- Vou parar de fumar
- Chico Buarque vai gravar um disco novo
- O Roberto Carlos, não
- Vou conhecer a Grécia, mas no verão
- Caetano Veloso vai calçar as sandálias da humildade
- Alguém vai descobrir uma música inédita do Legião Urbana
- As rádios não vão mais tocar pagode, axé nem sertanojo, desculpe, sertanejo
- O diploma para jornalista vai voltar
- O brasileiro vai ler mais livros e ver menos televisão
- Seu time vai ser campeão
- O Obama vai retirar os soldados americanos do Iraque e do Afeganistão e pedir desculpas pelo estorvo
- O Chávez vai convocar eleições sem ser candidato
- As Farcs vão depor as armas e deixar o tráfico
- O Tietê não vai mais transbordar
- Sarney, Arruda, Maluf, Collor e Renan Calheiros deixarão a política e irão viver enclausurados a rezar num convento franciscano
- Surgirão mais sites literário que publiquem gratuitamente textos de autores desconhecidos
- Seus sonhos serão realidade, desde que justos e que você os mereça.
- Felizes natal e ano novo para todos nós

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Gentileza

13 de novembro é Dia da Gentileza


- “Por favor, desculpe-me, com licença, bom dia, tudo bem.”
Essas expressões realçam a relação entre as pessoas, aproximam contrários, estreitam distâncias, abrem portas, conquistam, fascinam, desarmam o menos humorado. Ser gentil não é difícil, basta apenas entender que um dia você estará do outro lado e gostará de ser bem atendido. Então, faça a sua parte. Gentileza é como ímã. Atrai outra ação parecida e assim por diante. A corrente só é quebrada quando encontra um mal-educado no caminho. Aí, alguém tem de começar de novo. Mas antes começar do que terminar, certo?
Gentileza das boas tem de ser espontânea e despretensiosa. Só assim é verdadeira. Caso contrário, beira falsidade, interesse. Tem de ser também dosada, leve, sutil, para não parecer pegajosa e inconveniente. Vai aqui uma piadinha sobre uma pessoa gentil que um dia se excedeu.
Conheci um sujeito que era tão gentil que todo dia, por dever de consciência, praticava uma boa ação. Certa feita ele chegou tarde ao escritório e o chefe não foi nada gentil com ele: “Pô, meu, quarenta minutos atrasado. O que aconteceu?”. Ao que ele respondeu: “Doutor Oliveira, eu estava ajudando uma velhinha atravessar a rua”. O chefe coçou e meneou a cabeça: “Boa ação, rapaz. Mas... quarenta minutos para atravessar a velhinha?” O gentil justificou: “Chefe, ela não queria”.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Janela da primavera


Cada vez que da janela a vejo passar na calçada,
meu coração bate como pandeiro e a respiração
aumenta a ponto de empurrar um navio a vela.

Sinto que olhar você, mesmo sem ser notado,
é tão vital e prazeroso, que já se tornou vício.
Não há médico, remédio ou oração que me cure

Os dias passam e vão, bem como as noites.
No entanto, o perfume que exala de seu corpo,
lá embaixo, permanece em minhas narinas

Vamos, menina, suba naquela árvore.
Cole-se ao caule, vibre o corpo e cante.
Você é a cigarra, a trombeta da minha primavera

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Pescador de sonhos


Sentei-me à beira do rio e comecei a arrumar meus apetrechos: vara, anzol, linha, boia, chumbada, molinete, suporte e isca. Tudo pronto para pescar o que mais eu desejava na vida, um sonho. Sim, alguém me disse que naquele rio eu seria o pescador de sonhos. Por que não?
O primeiro sonho que peguei foi uma bolsa cheia de dólares. Quase um milhão. Aliás, a valise estava tão bem fechada que as notas ainda continuavam sequinhas.
Achei pouco, meu sonho era ainda maior. Fechei a bolsa e a devolvi às águas. Mudei a isca para fisgar outro sonho e arremessei o anzol no meio do rio. Minutos depois, a boia afundou, sinal que algo estava a beliscar a isca, lá no fundo das águas, então puxei com força. Era tanto o peso, que a vara envergou e ficou em forma da letra U. Puxei com dificuldade e veio o meu sonho: um automóvel esportivo da Ferrari, mais vermelho que papo de peru.
Admirei bastante meu sonho pescado até que percebi que ainda não era o que desejava. Joguei o carro às águas, mudei novamente a isca e arremessei mais forte, de modo a ultrapassar a metade do rio. Quando fisgado, o peixe se mostrou ser o mais pesado até então. Puxei o bicho, um avião enorme e já com o tanque cheio. Não era, porém, ainda o meu sonho.
No arremesso seguinte, trouxe sem dificuldade uma tilápia de mais ou menos um quilo. Tirei o peixinho do anzol e o devolvi às águas. Ele afundou feliz e liberto.
Já cansado e com fome, pois beira de rio sempre atiçou meu apetite, fui embora. Se eu tiver outro sonho, pescá-lo-ei amanhã.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Novo prefeito, velha política


O novo prefeito de Beiradinha sentou-se na cadeira estofada e olhou através da janela. Lá fora, os cidadãos andavam de um lado para outro, procurando seu destino. “A partir de hoje, eu os governo”, pensou consigo mesmo o alcaide recém-eleito.

Alguns minutos depois, o secretário de economia e o vereador, líder de governo na câmara municipal, sentaram-se à frente do prefeito.
- Nosso orçamento anual é de trocentos milhões, disse o secretário.
- Isto é ótimo, dá para eu realizar meu plano de governo e pagar os funcionários, ressaltou o prefeito.
- Mas, senhor, nós ainda não negociamos nossa maioria na câmara, lembrou o vereador.
- O que isso tem a ver? (o prefeito)
- Para conseguirmos maioria na câmara, precisamos cooptar mais quatro vereadores. E isto significa...Isto quer dizer...Parte do orçamento vai para obras nas bases destes vereadores. Só assim, passarão para nosso lado e votarão sempre com a gente.
- Meu Deus! No meu programa de rádio eu sempre desci o cacete nestas transações nebulosas. E agora estou dentro de uma. (o prefeito)

Uma semana depois o vereador volta ao gabinete do prefeito

- Negócio fechado. Consegui seduzir cinco vereadores. Agora temos bancada mais que suficiente para aprovar qualquer projeto.
- O que eles querem? (prefeito)
- Temos de construir este ano um galinheiro municipal na Vila das Espigas, reduto do vereador um, uma estradinha ligando a fazenda do vereador 2 ao sítio da vereadora 3 (deve haver algo entre eles), consertar a ponte sobre o rio Dorminhoco, no Jardim das Serpentinas, onde mora o quarto vereador. Já o quinto, quer a visita quinzenal de um médico da prefeitura à Casa da Iraci, na Estrada dos Prazeres, para verificar a saúde das meninas que trabalham lá. Estes nobres parlamentares foram eleitos em cima destas promessas. O secretário de economia me disse que tudo isto irá representar cerca de 63% do orçamento da prefeitura para este ano.
- Como é que é? (o prefeito irado). É muito dinheiro. O que sobra só dá para pagar o funcionalismo e mais algumas obrinhas por aí. Deste jeito não posso investir, não posso cumprir minha plataforma de governo, não dá para priorizar nada. No meu programa de rádio, eu sempre critiquei os outros prefeitos por não investir, não priorizar...
- Senhor prefeito. É pegar ou largar. Sem a colaboração destes vereadores, não teremos maioria e o senhor não conseguirá governar.
- Nunca imaginei que fosse assim. No meu programa de rádio...

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Copo de cada dia


Toninho apertou o botão e seu torno parou de funcionar. Retirou a ferramenta usada e gasta e foi ao almoxarifado pegar outra. Enquanto trocava o dispositivo, para usinar uma nova peça, olhou a máquina ao lado, desligada há dois dias, esperando um novo profissional, e lembrou de seu antigo operador, o amigo Fernando, o Nandão. Que vida besta meu Deus!, pensou Toninho.

Seu colega havia sido morto num assalto, quando chegava à noite em casa. Coitado. Logo agora que ele estava tão contente com o torno novo, importado da Alemanha, dotado de comando numérico computadorizado e software de última geração. Nandão havia feito um mês de curso para trabalhar no equipamento. Até algumas palavras de alemão o danado falava.

Eles se conheciam desde os tempos de Senai. E lá se iam os anos. Fizeram estágio juntos. Foram efetivados no mesmo dia. Grande amigo, o Nandão, lastimou Toninho. Quem iria acompanhá-lo agora na cachaça das cinco, no boteco do Paraíba? Toda tarde, logo que saíam do trabalho, tomavam um copo da boa. E agora? Neste instante, Toninho teve uma idéia. Tomaria dois copos de pinga. Um para ele, outro em homenagem ao amigo, alijado do mundo dos vivos tão precocemente.

No início, Paraíba achou estranho. Mas com o tempo foi se acostumando. Assim que Toninho entrava no boteco, ele vinha com dois copos de cachaça. Toninho bebia o seu e lambia o beiço. Depois falava o nome de Nandão e despejava, feliz, o segundo trago goela abaixo.

Uma bela tarde, assim que o freguês entrou no boteco, Paraíba depositou os dois copos cheios no balcão, como sempre. Toninho disse que a partir daquele dia tomaria apenas um copo de pinga. Por que? Indagou o dono do boteco. Ao que Toninho respondeu: “parei de beber”.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Inveja x gratidão


Roberta chegou ao escritório, sentou-se à mesa e abriu a gaveta para pegar os papéis do trabalho. Sua cabeça, no entanto, estava nas dívidas, pois devia uma quantia razoável ao agiota e seu carro era a garantia de pagamento. Nem se lembrava mais como havia chegado àquela situação, só sabia que tinha de se safar.

No final do dia, pouco antes de ir embora, ela foi ao banheiro e quase trombou com Cleide, outra funcionária, que saía do local. Na pia do lavatório, Roberta encontrou um colar de diamantes. Pegou o objeto e percebeu que o fecho estava quebrado. Era de Cleide. Já tinha visto a jóia no pescoço da colega, uma única vez, porém, numa festa de confraternização de final de ano na empresa.

Não gostava de Cleide. Havia tempos que a odiava, sutilmente, e nem aceitava convite dela para saírem juntas na hora do almoço. Achava que Cleide tinha recebido a promoção que ela, Roberta, merecia, por ser mais antiga de empresa. Outro fato que nutria a inveja, era o marido de Cleide: bonito e bem-sucedido na profissão. E Roberta ainda ansiava pelo casamento. “Ela nem precisa do cargo que ocupa, seu marido já ganha muito bem”, raciocinou Roberta enquanto admirava o colar.

Furtiva, ela achou um modo de apaziguar as investidas do agiota, que toda semana ligava para ela. Através da janela do banheiro, viu Cleide sair pela portaria. Não teve dúvidas. Pegou o colar, enfiou no bolso da blusa e saiu. Assim que pegou a bolsa para ir embora, percebeu que havia esquecido de urinar, entretida pelo achado. Retornou ao banheiro.

De volta à mesa, enquanto pegava a bolsa, sentiu o peso de uma mão na blusa. Era Cleide que recuperava sua jóia, pois um pedaço do colar tinha ficado para fora do bolso. Estupefata e envergonhada. Roberta olhou para Cleide, que disse.
- Oh amiga! Muito obrigada por ter achado meu colar no banheiro e guardado no bolso para me devolver depois.
Pega de surpresa, Roberta não sabia o que dizer e recebeu um abraço efusivo de Cleide.
- Eu sabia que podia contar com você. Quando notei a falta do colar, lembrei-me que você tinha entrado no banheiro depois de mim. Se eu perder esta jóia, não sei o que dizer a meu marido. É um presente de dez anos de casamento, que ele comprou numa viagem ao exterior. Raramente uso este colar. Só peguei para levá-lo à joalheria para consertar o fecho. E quase o perdi, se não fosse você. Meu Deus, Roberta, você é maravilhosa. Amanhã eu pago um almoço num restaurante chique. Pode escolher qual. Você merece recompensa.
Beijou novamente a amiga e foi embora. Roberta continuou atônita, sem dizer palavra.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Filho do outro


Vivemos no país da picaretagem, da violência gratuita, da impunidade, da ausência e da inoperância do Estado em setores cruciais, da baixa instrução do povo, do mau gosto, da elite insensível, dos partidecos que viram moeda de troca... Chega. Já estou ficando piegas e demagogo. Digo isso do Brasil, para mostrar que há exemplos raros de nobreza de caráter ao ponto do altruísmo. Relatarei um caso assim, de um brasileiro benevolente. Até acho que é por causa de pessoas assim que ainda não nos destruímos como sociedade.
O golpe telefônico do falso seqüestro aterrorizou muita gente em São Paulo e outras capitais do nosso Sudeste. E lá se vão mais ou menos dois anos. Na época, meu chefe me incumbiu de fazer uma pauta sobre tão candente assunto. Lá fui eu entrevistar o delegado titular da Delegacia Anti-seqüestro, na Capital. Bastante solícito e educado, o policial mostrou ser ótimo entrevistado, pleno de informações e de histórias curiosas, algumas dramáticas, outras patéticas e até as divertidas.Como gosto de historinhas, cá vai uma assaz interessante do delegado, cujo nome infelizmente esqueci. Incluí o fato na matéria, junto com outras duas historinhas sobre vítimas do golpe.
Triiiim!!! Catorze horas da tarde. Toca o telefone na casa de um senhor que vive só. Do outro lado da linha, uma voz alta e ameaçadora diz que seqüestrou o filho do homem e pede “trocentos real” de resgate. O dinheiro deve ser depositado em determinada conta de poupança em tal banco em até uma hora, no máximo. O homem anota tudo e se dirige ao banco.Agora, um adendo. Por quê poupança? O delegado me disse que este tipo de conta é muito fácil de abrir em qualquer banco, por não exigir os mesmos cuidado e burocracia da conta corrente. Poupança não dá cheque, limite, nem permite saque a mais do que lá tem. Com documento falso é pá-pum – abriu a conta.
Pois bem, o homem depositou o dinheiro e voltou para casa aliviado. No entanto, ele só foi dar queixa na delegacia uma semana depois. Agora o curioso da história: o homem não tinha filhos.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Vida de cão


Izolino acabou de receber pelo trabalho de quinze dias. Havia rebocado e assentado piso e azulejo no banheiro do bar do Maranhão. O botequeiro, conhecido sovina do bairro, reclamou, chorou e pagou uma quantia menor que a combinada. Mesmo contrariado, Izolino aceitou e saiu.A caminho de casa, parou na padaria para levar um frango assado e quentinho para sua família.


Enquanto o funcionário da padaria retirava o frango, Izolino observou um cachorro que havia um bom tempo estava parado em frente à máquina de assar. O bicho admirava os frangos a rodar e a se queimar. Olhava tão intensamente que parecia estátua. Apenas a cauda e os pequenos olhos se movimentavam.Izolino pegou alguns restos de carne na bandeja e jogou para o cão, mas este não se interessou. Permaneceu parado. Izolino arrancou uma coxa do seu frango, deu uma mordida impetuosa, com a fome de um lobo siberiano, que um pedaço caiu em seu bolso. Ele pegou de volta e comeu, embora sentisse um cheiro de cimento na carne.


Saciado, Izolino voltou os olhos ao cachorro, cuja língua estava tão esticada quanto uma gravata vermelha. Condoído, jogou o osso da coxa para o animal. Novamente, o vira-lata continuou impassível. “O que este bicho quer? “, pensou. Ao dirigir-se ao caixa da padaria para pagar, Izolino deixou o frango numa cadeirinha do balcão, enquanto procurava a carteira no bolso. Neste instante, o cachorro abocanhou o frango inteiro e correu. Izolino tentou ir atrás. Inútil. E ainda teve de pagar.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

ETeimosa


Sempre que Vandemílton chegava um pouco mais tarde lá vinha a bronca de Joselma, com sua voz metálica inconfundível.- Saiu com sua amante de novo, é?- O ônibus demorou a passar, justificou o marido.A mulher, como era de esperar, não acreditou e desfiou um rosário de impropérios em cima do companheiro. Joselma dizia que ele sempre tinha uma boa desculpa para justificar sua sem-vergonhice.Vandemílton era metalúrgico, trabalhava numa fábrica de chaves, fechaduras, cadeados, taramelas, trincos, dobradiças e outros dispositivos para prender ou fixar alguma coisa. Apertava parafuso o dia todo. Sofria de uma tendinite eterna na munheca direita. Mas tinha medo de entrar no seguro, ficar bom e não mais encontrar o trabalho na volta. Às vezes o punho doía até mesmo ao levar o garfo à boca.Alguns dias por semana fazia horas extras e chegava tarde da noite em casa. Mesmo assim encontrava Joselma inflexível.- Hora extra, nada. É alguma vagabunda que você encontrou no ponto de ônibus. Esta cidade tá cheia de mulher que quer coisa com homem casado e você ainda...Na verdade, Vandemilton era tão tímido que, se uma mulher lhe desse bola, ele acharia que ela era zarolha e estava olhando para alguém do seu lado. Depois de 13 anos de casado, já estava acostumado aos acessos de Joselma, sua única namorada na vida e aceitava as cenas de ciúme com galhardia. Pouco discutia.Nas noite em que Joselma dormia nervosa, Vandemílton não a procurava na cama, fato que a irritava ainda mais. O ciúme dela aumentou depois que descobriu um telefone de mulher no bolso do uniforme de Vandemílton, na hora de lavar a peça no tanque. Foi uma noite de desaforos e palavrões impublicáveis. Nem Joselma imaginava conhecer vocabulário tão chulo. Nem adiantou Vandemílton provar que aquele telefone era da concessionária de água e a mulher, atendente do serviço ao cliente. Ele tinha ligado para mudar a data de vencimento da conta e deixara o telefone com o nome da funcionária no bolso do macacão.Quanto aos outros atrasos, ele não mentia. Realmente chegava mais tarde por causa do trânsito, do ônibus e por outras adversidades da vida de quem mora na periferia de grandes cidades.Naquela noite, o cobrador e um passageiro brigaram no ônibus por causa de dez centavos. O homem esmurrou o cobrador, provocando rompimento no supercílio. O sangue desceu, fez meleca nas notas da gaveta e o motorista teve de parar na delegacia para lavrar a ocorrência. Vandemílton chegou três horas mais tarde em casa.- Qual a desculpa de hoje, seu à toa.- Fui seqüestrado por um disco voador. Horas depois os ETs descobriram que eu era o homem errado e me deixaram em frente de casa, pelo menos economizei um vale-transporte.- Essa é nova. Foi a vagabunda quem te ensinou? Porque você não conseguiria pensar nessa história sozinho. - Mas é verdade. Posso provar, assegurou Vandemílton e abriu a porta.Um ser estranho, com quatro braços, três pernas, um só olho em cada uma das duas cabeças, gosmento, exalando um gás malcheiroso, alto, magro e de cor indefinível sentou-se no sofá, para espanto de Joselma.- É o meu seqüestrador, apontou o marido.Refeita do susto, Joselma não se deu por vencida. Pôs o pano de prato no nariz e perguntou com voz nasalada.- É macho ou fêmea?

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O que é a fofoca


Esta crônica é baseada numa fábula que ouvi certa feita num filme

Talvez tomada pela consciência pesada, a senhora foi até a igreja se confessar.
- Padre. Acho que cometi pecado.
- O que a senhora fez?
- Eu fofoquei para minhas amigas sobre uma pessoa. Baseei-me apenas em suspeitas sem ter certeza absoluta sobre o que contava.
- Não vou perdoá-la, agora. Antes a senhora terá que voltar a sua casa, pegar um travesseiro, subir no telhado e cortar o travesseiro várias vezes com a faca para que todo seu preenchimento saia. Assim ela fez e no
dia seguinte retorna ao confessionário e relata ao padre.
- Pois bem, a senhora volta para sua casa e recolha tudo o que saiu do travesseiro.
- Impossível padre. O vento espalhou todas as penas pela rua e pelos quintais. Não tenho como recuperar.
- Agora eu acho que a senhora entendeu o que é a fofoca.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Na praça


Parei na lanchonete para tomar o café da manhã, antes de chegar ao escritório. Sou daqueles que só sentem fome uma hora depois de acordar. Enquanto punha açúcar no café com leite, reparei que na praça em frente, embaixo da marquise, um mendigo acordava e bocejava.

Sua aparência não colaborava em nada para que alguém pudesse saber seu sexo. Descobri que era mulher depois que ela pegou o espelho e começou a arrumar os cabelos embaraçados. Apesar de tudo, cabelos femininos, longos, esbranquiçados pela idade e sujos pela vida. Seus trejeitos, também de mulher. O impossível era adivinhar quantos anos tinha. Mas certamente ainda conservava o viço pela vida.

Notei seu esforço para deixar os cabelos lisos, pois ficavam enroscados no pente como se os fios estivessem amarrados uns aos outros. Após o penteado, ela pegou o batom e passou nos lábios, lentamente, como um ritual, como algo que a purificaria, que suavizaria a vida bruta que levava nas ruas.

Questionei a mim mesmo. Como é possível uma mulher naquela condição ainda se manter vaidosa? Depois, me penitenciei do preconceito. Por que não? Mesmo dormindo debaixo da marquise, vestindo trapos, comendo restos de comida dos restaurantes, vivendo de favores, perambulando pelas calçadas como peregrina da miséria, ela continuava mulher. É possível que esteja querendo ficar bonita para algum homem. Ou simplesmente satisfazendo o orgulho próprio.

Terminei rapidamente de tomar meu café e subi para o escritório. Da minha sala, olhei para baixo, através da persiana. Ela continuava lá, olhando no espelho e sorrindo para si mesma.

Eu, na minha condição de homem classe média, com curso superior, cartão de crédito, carro novo, assinante de jornal, gravata de shopping, leitor de centenas de livros pela vida, apartamento de três quartos, condomínio pago religiosamente, filhos em escola particular, bem-nutrido, pós graduado e eleitor de partido liberal, não tinha tantos motivos para sorrir. Aquela mulher, no entanto, ria, feliz, mostrando os dentes que ainda lhe restavam, com os cabelos penteados e a boca vermelha de batom.

Fechei a persiana e continuei a trabalhar. Quem sabe amanhã eu também encontre motivos para tornar a vida mais alegre.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Visões sobre o deproma de jornalista


- Vanderlei Luxemburgo. Acabaram co diproma? E Não me avisaram? Quebraram a hierarquia? Pensam que sou barriga de aluguéu? Comigo o diproma não joga mais.

- Muricy: Pô meu, num é isso. O diproma até que joga bem, pô, mas alguém, pô, tem de... Caramba, pô, além do diproma também caiu meu xicrete, pô.

- Dunga: Tenho de manter sempre o mesmo time. Porém, agora com a queda do diploma, ainda não sei quem chamar. Vou consultar o Jorginho.

- Sarney: Nobres senadores, não fui eu quem nomeou o diploma, muito menos quem o demitiu.

- Eduardo Suplicy: Discordo da da queda da do diploma ma, porém concordo do que não precisa de dele pa para ser jornalista...É preciso ter talento para de desempenhar, trabalhar, la labutar, desenvolver, i i im implementar, implantar... o o o otimizar...

- Fernando Gabeira: Acabaram com o diploma? O que isso companheiro? Ainda bem que fiz carreira na política, se continuasse no Jornal do Brasil tava mal.

- Hebe Camargo: Noooossa gente, coitadinho do diploma. Ele não era uma gracinha?

- Fernando Lugo: Não sou pai dele.

- Rubinho Barrichello: Nunca precisei de diploma para ser um vencedor.

- Hugo Chávez: Acabou el diploma? Se eu fosse o Lula, dissolvia o STF e fechava o Congresso.

- Papa Bento 16: Em nome do pai, do filho e do...

terça-feira, 23 de junho de 2009

Vitória


Um cavalo aproximou-se da égua Vitória, que pastava serenamente do outro lado da cerca, escolhendo os ramos mais verdinhos do capim. Um breve relincho de macho fez com que ela levantasse a cabeça. Ao ver o garanhão, abanou cortesmente sua cauda peluda. Como a porteira entre as duas fazendas estava aberta, o que era raro, Vitória juntou-se ao amigo e saíram ambos trotando calmamente, andaram tanto que até chegaram ao centro da pequena cidade de Beiradinha, cortada pelo Rio Dorminhoco. O rio tem este nome por que suas águas se movimentam lentamente. Diz a lenda local que quem o olha muito sente sono.

Minutos depois, apareceu um funcionário da prefeitura e espantou os bichos. O cavalo correu. Vitória, não. Como estava com um corda no pescoço, foi fácil ao funcionário puxá-la e levá-la ao galpão da prefeitura.

O novo prefeito, ansioso por aumentar a arrecadação do município, para construir uma terceira ponte sobre o Dorminhoco, conseguiu aprovar na câmara uma lei que proibia a circulação de animais no perímetro urbano de Beiradinha. Muitos o aconselharam da impopularidade de tal medida.

Era uma questão cultural, trazida e curtida pelos anos, de que os animais sempre perambularam pelas ruas sem que jamais alguém achasse aquilo estranho. Qualquer bicho ali sempre fora tratado como vaca nas ruas de Nova Déli ou Bombaim, na Índia.

Mas o imposto foi aprovado e estava vigorando. Como bicho não costuma ter dinheiro no bolso, nem o canguru, que tem bolso, o dono do animal seria obrigado a pagar a taxa.

Assim que Dona Branca foi avisada, saiu correndo em direção à prefeitura. Em seu gabinete, o alcaide lhe disse que teria de pagar a taxa para levar Vitória de volta. A fazendeira lembrou que jamais sua égua havia deixado a propriedade.

“Sou uma pessoa responsável, sempre cuidei bem de meus animais e pago certinho todos os impostos. Não é justo pagar para retirar minha égua do galpão municipal”, suplicou Dona Branca. O prefeito insistiu na cobrança.

A senhora entrou no galpão e viu Vitória feliz da vida, balançando a cauda e a cabeça diversas vezes, ao reconhecer a dona. Puxou a égua pela corda e a retirou do depósito. Ao ver a mulher e a égua, já na rua, o prefeito exigiu novamente o pagamento da taxa.

- Não vou pagar coisa alguma. Se for homem, venha me prender. Né, Vitória?

E as duas voltaram felizes para casa.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

"Meu amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus"


Pequena crônica cruel da vida, baseada na música Sob medida, de Chico Buarque

Meu amigo, somos produtos do mesmo lixo. Não valemos o grão de feijão que nos alimenta. Só vivemos sob o mesmo teto porque não temos outro e também em razão de que um ainda interessa ao outro. O dia em que acabar esta conveniência é cada um por si.

“Igualzinha a você, eu não presto. Traiçoeira e vulgar, sou sem nome, sem lar, sou aquela. Sou filha da rua, eu sou cria da sua costela. Sou bandida, sou solta na vida e sob medida pros carinhos seus.”

Se outro homem me deseja, porque não ir com ele? E você? Mais mentiroso e cafajeste que parafuso enferrujado. Vagabundo, vira-lata, sem ofício ou vontade, nutre-se de brisa. Mal consegue pagar suas cachaças e seu pif-paf. Mas comigo não tem comida de graça, tampouco roupa lavada. Parecida a você, trabalho não é prioridade na minha vida.

Não sou mulher de um só homem e jamais quis ser a única e exclusiva de nenhum infeliz. Ganho todas de você, só perco nos músculos, pois nasci fêmea e você ...

Vivo com você, também, para ter alguém a quem xingar, humilhar, amaldiçoar. De vez em quando, reconheço, você serve até para aquietar meus desejos de mulher. Mas hoje sua covardia superou minhas previsões mais pessimistas. Por isso, imbecil, abaixe este braço, sente-se à mesa e coma o resto que lhe deixei. “Meu amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus. Você tem o amor que merece.”

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Voto proporcional de lista fechada


Tramita no Congresso Nacional, com chances de aprovação até outubro, lei que determina o fundo público de campanha e o voto em lista fechada para cargo legislativo. O primeiro vou deixar para lá, apesar de não gostar de ver meu dinheiro usado na impressão de santinhos ou na confecção de camiseta e boné de políticos. Ficarei no segundo tema. Como tudo na vida, há vantagens e desvantagens e cada um que julgue por si. Não quero passar juízo de valor, a favor ou contra, bom ou mal, justo injusto, feio bonito, direita ou esquerda etc.

Este tipo de voto, de lista fechada, por incrível que pareça, é o mais adotado no mundo. Apenas Brasil e Finlândia usam a lista aberta, em que o eleitor vota no sujeito que faz parte de uma relação divulgada pelo partido ou coligação. Chama-se aberta porque é como se o eleitor tivesse uma lista à sua frente e pinçasse um nome lá de dentro na hora de votar (“vem cá meu querido, é você que eu quero”). Portanto, se pode escolher é porque a lista está aberta. Se não pode, está fechada. Lembremos: este voto (fechado ou aberto) é sempre proporcional, porque se trata da escolha de representante legislativo. No Brasil, são os nobres e distintos deputados federal e estadual e vereador. Presidente, governador, prefeito e senador são escolhidos por outro tipo de voto, chamado majoritário, em que o mais sufragado (que palavra feia, mas está correta) leva, em um ou dois turnos.

Nosso sistema eleitoral, porém, é bastante democrático e flexível (tem gente que discorda, mas aí é outra discussão) ao permitir o voto proporcional de lista fechada quando o eleitor escolhe apenas o partido em vez do candidato. Então não é tanta novidade assim para nós. Já praticamos lista fechada, quando escolhemos a sigla, sem saber que tinha esse nome.

Na fechada, partido ou coligação realizam convenção e elaboram uma relação de seus candidatos em ordem de preferência. Se o partido/coligação obtiver voto suficiente para eleger um deputado ou vereador, este felizardo será o primeiro da lista. Se conseguir votos para fazer dois felizardos, os dois primeiros da relação serão eleitos. E assim por diante.

Existe a possibilidade teórica de a lista fechada reduzir o número de voto cacareco, aquele em que o eleitor vota num candidato famoso ou bonitão ou engraçado, folclórico, enfim. Esse sujeito às vezes ganha tanto voto que leva outros eleitos, com votação inexpressiva, juntos com ele e não há injustiça nisso, pois é a lei. Se alguém quiser eliminar essa situação derruba toda a lógica matemática do voto proporcional. É a regra do jogo. Quem entra sabe que isso pode ocorrer. Como vocês viram, o candidato cacareco é muito usado para puxar votos. Ele aparece em toda eleição.

Na fechada, o partido/coligação escolhe seus melhores quadros.
Teoricamente, usar o cacareco não tem sentido, pois o voto não é na pessoa. Por isso, provavelmente os escolhidos serão membros mais dedicados à causa partidária, mais expressivos dentro da agremiação. É até possível reduzir também a infidelidade partidária. Pessoal, tudo aqui é teórico. Não dá para ter certeza de nada, pois estamos falando de futuro e ainda mais num país complicado como o nosso, que distorce qualquer lógica.

Mas tem desvantagens. É possível que surjam oligarquias nacionais, estaduais e municipais, se os primeiros nomes da lista forem sempre os mesmos ou seus cupinchas. Outra desvantagem (e aqui entra a picaretagem do político brasileiro): os primeiros lugares da lista poderiam ser vendidos, rifados, trocados etc. Um candidato sério, mas sem prestígio na cúpula partidária, ficaria no pé da lista.

Então gente, é uma decisão hercúlea escolher entre lista aberta ou fechada. Mesmo porque o nosso problema (agora vou opinar) não é o sistema eleitoral brasileiro (que, repito, é bastante democrático e bem-intencionado), mas a qualidade moral (e aqui entra tudo, caráter, cultura, conhecimento, honestidade, boa vontade etc) dos nossos eleito e eleitor.


quarta-feira, 20 de maio de 2009

O Bur(r)ocrata


Planílio chegou cedo à sua sala, antes mesmo da secretária. Sentia-se preocupado. Mesmo assim ligou o computador e passou a analisar os relatórios de produção. Notou que havia seções e pessoas que não acompanhavam o ritmo geral da empresa. Era necessário mudar o processo, trocar empregados de cargos, demitir outros.

Novamente, sentiu algo estranho na cabeça, sem entender o que ocorria. Sempre fora profissional ativo, ambicioso, audacioso. Jamais tivera problemas de escrúpulos ao mandar empregados embora, transferi-los de um local para outro, sugerir o corte do cafezinho ou mesmo a compra de um papel higiênico de qualidade inferior. Valia tudo para reduzir os custos e aumentar a produção. Seus patrões elogiavam suas decisões na empresa.

No último ano, reduzira o quadro de funcionários em 30%. Os que ficaram faziam o trabalho de dois ou três. Era comum seus subordinados deixar o serviço tarde da noite, exaustos. Ele, Planílio, também dava seu sangue em prol da produção e da qualidade do que ali se fabricava. Dormia tarde da madrugada e acordava cedo, ávido por chegar ao escritório e analisar os relatórios.

Sabia de tudo. Conhecia os atrasos dos empregados, suas idas ao banheiro, formação de rodinhas de papo durante o expediente. Analisava seus relatórios de modo frio. Se o funcionário estava gripado e produzia menos, pouco se lhe dava. Se o sujeito tinha se separado da mulher, não lhe interessava.

Raramente descia ao chão de fábrica para ver os funcionários produzir. “Enxergava” tudo isso nos relatórios. Para que ver a fábrica, se os números lhe bastavam. Mexia pessoas e equipamentos de dentro de sua sala, sempre baseado em seus relatórios.

Foi até a janela e respirou fundo, como se sentisse falta de oxigênio. Não conseguia entender porque estava daquele jeito. Fechou os olhos na tentativa de entender o motivo de tanta angústia. Pela sua mente passaram máquinas, dinheiro, automóveis, homens e mulheres correndo para lá e para cá a gritar “pare de mexer com nossas vidas como se fôssemos números”.

Planílio não se conteve. O desespero foi tamanho que ele saltou da janela, do oitavo andar do prédio da companhia. Por ser burocrata, levou quinze dias para chegar ao solo e outros trinta para morrer.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Mistura explosiva


Um certo átomo de hidrogênio havia tempos estava sozinho. Assaz cansado de tanta solitude, resolveu procurar vaga numa molécula de água. Para tanto, precisava encontrar um de seus irmãos e um oxigênio, nas mesmas condições. Em suas andanças, encontrou gases nobres que não se misturavam com a ralé da tabela periódica, isótopos radiativos de urânio, prestes a embarcar para um país do Oriente Médio, ramificações de carbono e outros elementos. Mas não encontrou nenhum local para se combinar, nenhuma molécula carente de hidrogênio. Abatido, voltando para casa, encontrou no caminho outro igual a ele e resolveram se juntar para formar a molécula H2, o gás hidrogênio, um fluido extremamente inflamável. O mesmo que pôs a pique o famoso dirigível alemão Himdemburg, quando se aproximava de Nova Iorque. Assim que os dois solitários se juntaram e formaram o H2, um homem, que passava por ali, acendeu um cigarro e inadvertidamente jogou o palito de fósforo, ainda aceso, na molécula recém-criada.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Instinto de goleador


O famoso repórter esportivo Edu Gramado ainda se encontrava na sala de imprensa do hotel, sentado ao computador, a escrever textos para seu programa de rádio do dia seguinte, quando viu o centroavante Joãozinho TNT entrar no saguão às quatro horas da manhã. O time de Joãozinho estava concentrado no hotel para o jogo do dia seguinte e Edu também se hospedou ali para ficar perto da notícia.

Foi ao encontro de Joãozinho TNT e perguntou de onde ele voltava àquela hora.
- Fui jantar com amigos – respondeu o goleador
- Jantar a essa hora?
- Ah, meu, por favor, quero subir e dormir
- João, vou noticiar isso amanhã em meu programa de rádio
- Rapaz, você vai me sacanear. E ainda mais amanhã que tenho jogo importante. Não faça isso. Vou ficar mal com a torcida, com os colegas, técnico, presidente do time e toda a imprensa. Não faça isso, por favor
- Tá bom João. Dessa vez vou deixar pra lá. Você é ídolo do time e não vou te atrapalhar – garantiu o repórter.

No dia seguinte, porém, Edu Gramado deu a notícia em seu programa das 10 horas da manhã e do modo mais pomposo possível.
- Ninguém me contou. Eu vi, com estes olhos que o gramado, digo, a terra irá comer. É uma vergonha um jogador profissional, bem pago, chegar a essa hora na concentração, após passar a noite na gandaia...

Depois, à tarde, se realizou a importante partida. Ainda atordoado com a notícia João TNT jogou mal, perdeu vários gols, até um pênalti e seu time foi derrotado. No dia seguinte, ele foi ao estúdio da rádio conversar com Edu.
- Você prometeu que não diria nada e mesmo assim me sacaneou. Estou cheio de problemas. Todo mundo no meu pé
- Desculpe João. Não resisti. O jornalista não pode guardar a notícia para si mesmo. Tem de passá-la adiante para seu leitor ou ouvinte.
- Você me deu sua palavra e...
- Desculpe, meu instinto de repórter foi mais forte. Vou te contar uma história para você entender minha posição. O escorpião pede carona à tartaruga para atravessar o rio. Com medo, ela pergunta se ele não vai picá-la durante a passagem. O escorpião garante que não, porque se fizer isso os dois morrem na água. Quando chegam à margem, no outro lado, o escorpião pica a tartaruga no pescoço, a parte mais delicada do bicho. “Por que fez isso. Você me prometeu”, choraminga a tartaruga. “Desculpe, amiga, é meu instinto natural”, responde o escorpião. Então Joãozinho, entendeu porque eu tive de divulgar a notícia? O centroavante pensou, pensou e desferiu um chute no saco do repórter.
- Que é isso João, gritou Edu, de dor
- E o instinto do jogador é chutar bolas

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Árvore da vida


Árvore da vida

Otávio Nunes

Encontrei a árvore cujos frutos alimentam a humanidade. Está velha, mas frondosa, verde e produtiva, como sempre. Sentei-me à sua sombra e lhe perguntei sobre o calvário de sua vida, ao fornecer comida para bilhões de bocas no mundo. Ela não reclama de ter de gerar ininterruptamente, segundo após segundo. Apenas me diz que seus frutos não são distribuídos igualitariamente. Há pessoas que se satisfazem com um ou dois, enquanto outros levam milhares. Chegam até mesmo a vender seus frutos a quem não consegue ter acesso a ela.

Existem aqueles que sobem e machucam seus galhos e outros que sacodem seus ramos para derrubar o fruto. Tem ainda alguns, mais apaixonados, que desenham ou escrevem na sua casca dura. Até rede querem instalar em seu caule. “Aí, já é demais”, diz-me ela. Outro fato que a constrange é o urinar de cachorros. “Eles me confundem com poste”, justifica.

Mas a pior situação por que ela passou até hoje foi quando apareceram dois sujeitos, um portando machado e outro, a motoserra. “Tremi por inteira, pensei ser o meu fim”, conta-me. No entanto, eram apenas dois atores que foram visitá-la para filmar a propaganda de uma organização ecológica. “Refeita do susto, dei-lhes uma cesta cheia de frutos.”

Certa feita, relata-me a árvore da vida, sua sombra serviu para uma conferência de paz entre os líderes de dois países em conflito pré-beligerante. “Nunca vi tanta indignação no semblante de alguém como nos daqueles dois.” No final, após muita conversa e olhares recíprocos de ódio, resolveram selar acordo de paz entre suas nações. Assim que se levantaram para ir embora, a árvore deixou cair dois frutos, um em cada cabeça. “Eles tinham de passar por algum castigo. Mas não se feriram, porque eram dois cabeças-duras, mesmo”, justifica a planta.

Depois de horas de conversa, despedi-me de nossa Grande Mãe, beijei seu tronco, guardei uma de suas folha como lembrança e peguei três frutos frescos e maduros. Quando me encontrava a duzentos metros dela, olhei para trás e vi seu vulto portentoso ao balançar do vento. Daqui uns cinquenta anos, quero voltar a vê-la novamente, apalpar seu caule e descansar à sua sombra, se ela ainda estiver viva.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Na cesta!


Otávio Nunes

Fazia 10 minutos que Sorvetinho tinha entrado na quadra. Era a última esperança do técnico para ganhar aquela final de basquete. No entanto, o outrora Rei da Cesta não conseguiu encaixar nenhuma bola. O jogo se encaminhava para o final e seu time perdia. Sorvetinho, um jogador de dois metros e cinco centímetros de altura, mais magro que modelo de passarela, tinha os ombros caídos. Com os braços soltos e pernas juntas, parecia realmente um picolé, daí seu apelido.

Se já não bastasse a má fase experimentada durante todo o campeonato, ele se sentiu mais irritado ainda com o comportamento antiesportivo de um torcedor atrás do garrafão que o vaiou desde que entrou em jogo. “Seu magricela burro, jogadorzinho cego, você é mais feio que bater na mãe, não acerta nenhuma bola na cesta, seu trouxa...”

Faltavam poucos segundos para acabar o jogo e sua equipe estava atrás no placar, que apontava 91 a 89. Depois de ouvir mais uma provocação do torcedor, Sorvetinho não se conteve. Pegou a bola na lateral da quadra e jogou com toda força contra a cabeça do homem, que por instantes tinha virado o rosto para outro lado. No entanto, provavelmente por causa de sua má fase em arremesso, a bola tomou outra direção e foi direto para dentro da cesta: três pontos. O jogo acabou e Sorvetinho virou herói com seus três pontos obtidos a mais de cinco metros.

Aclamado pela torcida e cercado pela imprensa, o jogador nem entendia direito o que tinha acontecido. Um repórter se aproximou dele e perguntou. “Sorvetinho, como você se sente sendo o herói na conquista do campeonato?” Ao que ele respondeu. “Sinto-me decepcionado. Perdi a chance de quebrar a cara daquele filho da mãe.” Ninguém entendeu o que Sorvetinho quis dizer e ele deixou por isso mesmo e se entregou totalmente à festa.

Na saída do clube, ele ouviu uma voz conhecida gritar ao longe. “Seu merdinha, você não consegue acertar nada, mesmo.”





















quinta-feira, 9 de abril de 2009

Vida de cão


Otávio Nunes

Izolino tinha acabado de receber pelo trabalho de quinze dias. Havia rebocado a parede e assentado piso e azulejo no banheiro do bar do Maranhão. O botequeiro, conhecido sovina do bairro, reclamou, reclamou, e acabou por pagar uma quantia menor que a combinada. Mesmo contrariado, Izolino aceitou e saiu.

A caminho de casa, parou em frente à padaria para levar um frango assado quentinho para sua família. Enquanto o funcionário da padaria retirava o frango, Izolino observou um cachorro que havia um bom tempo estava parado em frente à máquina de assar. O bicho admirava os frangos a rodar e a se queimar. Olhava tão intensamente que parecia estátua. Apenas a cauda e os pequenos olhos se movimentavam.

Izolino pegou alguns restos de carne da bandeja e jogou para o cão, mas este não se interessou. Permaneceu parado. Izolino arrancou uma coxa do seu frango, deu uma mordida e jogou o restante. Novamente, o vira-lata continuou impassível. “O que este bicho quer? “, pensou. Dirigindo-se ao caixa para pagar, ele deixou o frango na cadeirinha do balcão da padaria enquanto procurava a carteira no bolso. Neste instante, o cachorro abocanhou o frango e correu. Izolino tentou ir atrás. Inútil. E ainda teve de pagar.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Sono sagrado


Otávio Nunes

“Para mim, basta um dia.
Não mais que um dia.”
(Chico Buarque)

Cristônio e seus amigos se reuniram à tarde, após o almoço, enquanto tomavam banho de sol no pavilhão três. O grupo era formado por 14 pessoas. Mas na hora de eles se evadirem pelo túnel, antes da sirene anunciar o fechamento das celas, outras pessoas poderiam aparecer e engrossar o número de fugitivos. Zé Pança, que apesar do nome era mais magro que espaguete japonês, disse que não poderia impedir a presença de outros presos, embora todo o plano fosse feito para um contingente de no máximo vinte pessoas. “Se não, vira bagunça e não dará certo”, preveniu Pança.

Às seis e meia da noite, meia hora antes de as portas das celas serem trancadas, eles tiraram a lona que tapava a boca do túnel e iniciaram a fuga. Cristônio foi o quarto a entrar no buraco, carregando apenas uma pequena trouxa com roupa limpa para se trocar quando estivesse fora da penitenciária.

Deu tudo tão certo que ele mal acreditava que estava novamente pisando numa rua. Trocou de roupa rapidamente, ao lado de um muro, e foi para casa. No caminho comprou um brinquedo para o filho.

Dormiu num banco da rodoviária e pegou o ônibus durante a madrugada. Chegou em sua casa às nove e pouco da manhã do dia seguinte. Sua esposa, embora conhecesse o plano de fuga, não o esperava tão cedo. “Mas tinha de ser hoje”, murmurou Cristônio para a mulher. Abraçou o filho de três anos, nascido quando ele já estava na cadeia, e disse que depois do almoço iria lhe dar um presente. O menino ficou radiante de alegria.

Almoçaram arroz, feijão e picadinho de batata com acém. Um lauto banquete para a família, pois o dia era especial e Cristônio comeu mais que lima nova. Depois deu o carrinho para o menino e ambos começaram a brincar no chão do barraco, até que dormiram na terra batida.

Cristônio foi acordado meia hora depois por dois policiais. Não teve tempo de esboçar qualquer reação, já que suas mãos estavam algemadas. Um dos guardas ia abrir a boca para falar algo, porém o preso rogou: “Levem-me em silêncio. Não acordem o menino. Ele dorme feliz porque hoje é seu aniversário.”

quinta-feira, 19 de março de 2009

Inveja X gratidão


Otávio Nunes

Roberta chegou ao escritório, sentou-se à mesa e abriu a gaveta para pegar os papéis do trabalho. Sua cabeça, no entanto, estava nas dívidas, pois devia uma quantia razoável ao agiota e seu carro era a garantia de pagamento. Nem se lembrava mais como havia chegado àquela situação, só sabia que tinha de se safar.

No final do dia, pouco antes de ir embora, ela foi ao banheiro e quase trombou com Cleide, outra funcionária, que saía do local. Na pia do lavatório, Roberta encontrou um colar de diamantes. Pegou o objeto e percebeu que o fecho estava quebrado. Era de Cleide. Já tinha visto a jóia no pescoço da colega, uma única vez, porém, numa festa de confraternização de final de ano na empresa.

Não gostava de Cleide. Havia tempos que a odiava, sutilmente, e nem aceitava convite dela para saírem juntas na hora do almoço. Achava que Cleide tinha recebido a promoção que ela, Roberta, merecia, por ser mais antiga de empresa. Outro fato que nutria a inveja, era o marido de Cleide: bonito e bem-sucedido na profissão. E Roberta ainda ansiava pelo casamento. “Ela nem precisa do cargo que ocupa, seu marido já ganha muito bem”, raciocinou Roberta enquanto admirava o colar.

Furtiva, ela achou um modo de apaziguar as investidas do agiota, que toda semana ligava para ela. Através da janela do banheiro, viu Cleide sair pela portaria. Não teve dúvidas. Pegou o colar, enfiou no bolso da blusa e saiu. Assim que pegou a bolsa para ir embora, percebeu que havia esquecido de urinar, entretida pelo achado. Retornou ao banheiro.

De volta à mesa, enquanto pegava a bolsa, sentiu o peso de uma mão na blusa. Era Cleide que recuperava sua jóia, pois um pedaço do colar tinha ficado para fora do bolso. Estupefata e envergonhada. Roberta olhou para Cleide, que disse.
- Oh amiga! Muito obrigada por ter achado meu colar no banheiro e guardado no bolso para me devolver depois.
Pega de surpresa, Roberta não sabia o que dizer e recebeu um abraço efusivo de Cleide.
- Eu sabia que podia contar com você. Quando notei a falta do colar, lembrei-me que você tinha entrado no banheiro depois de mim. Se eu perder esta jóia, não sei o que dizer a meu marido. É um presente de dez anos de casamento, que ele comprou numa viagem ao exterior. Raramente uso este colar. Só peguei para levá-lo à joalheria para consertar o fecho. E quase o perdi, se não fosse você. Meu Deus, Roberta, você é maravilhosa. Amanhã eu pago um almoço num restaurante chique. Pode escolher qual. Você merece recompensa.
Beijou novamente a amiga e foi embora. Roberta continuou atônita, sem dizer palavra.

terça-feira, 17 de março de 2009

Tá estressado? Vá pescar!!


Otávio Nunes

Este artigo se refere a pesqueiros na Região Metropolitana de São Paulo (a Capital). Não sei como são em outras localidades e Estados do Brasil. Mas acredito que não sejam muito diferente.

Ao falar em pescador, não pode faltar história. Lembro-me de um causo que ouvi num pesqueiro em Jundiaí, ano passado. O homem ao meu lado me disse que certa feita foi pescar com um amigo na lagoa de Piracaia, na região da Mantiqueira. Num arremesso desajeitado, se desequilibrou e caiu na água. O outro, que nada viu, perguntou depois o que tinha acontecido. Para não passar vergonha, ele disse que fisgou um peixe tão grande que o derrubou na água e quase o levou ao fundo. “E o seu amigo acreditou?”, perguntei eu. “Pelo menos não duvidou”, respondeu o pescador a meu lado, sorrindo.

Em São Paulo, pescador só tem mesmo pesqueiro para dar banho na minhoca. Se for a um rio, só pega bota velha e garrafa PET. O número desses estabelecimentos cresce na Grande São Paulo e alguns até se transformam em enormes complexos de entretenimento com restaurante, pousada, playground, piscina e outras atrações.

Há duas modalidades de pescaria: pesque-pague e pesque-solte (a esportiva). Na primeira, a pessoa paga pelo quilo e na segunda devolve o peixe à água. Mas quem for a um pesgue-pague na esperança de comer peixe mais barato, esqueça. Pode ser mais caro. O quilo da tilápia, por exemplo, sai por volta de R$ 7. Espécies nobres, como pintado e dourado, chegam a custar mais de R$ 12 o quilo. E o primeiro deles costuma pesar mais de cinco quilos cada. Ao fazer as contas, é melhor comprar no mercado. Só que lá, você não terá a diversão de sentir o bicho puxar a linha e envergar a vara. Pesqueiro não é para encher barriga, mas para se divertir. É este o espírito.

Por isso, a cada dia cresce mais a pesca esportiva. Na Grande São Paulo, o pesque-solte custa de R$ 15 a R$ 30 reais a diária, geralmente de sete da matina às 18 horas, e o pescador pega e solta quantos quiser. Não é aconselhável praticar a esportiva com intenção de levar o peixe. Custa os olhos da cara. E tem lógica. O proprietário prefere o bicho nadando para satisfazer o público do que na panela do pescador. Por isso, todo bom pesqueiro reserva lagos diferentes para as duas modalidades. Obviamente, a lagoa da esportiva tem peixes maiores e menos tilápia.

Pesca-se de duas maneiras: anzol parado no fundo do lago, com chumbada, ou em linha suspensa e presa na bóia, com mais ou menos um metro abaixo da água. A distância pode ser regulada com a descida ou subida da bóia. O primeiro caso, o mais comum, é para peixes de fundo, como pacu, pintado, catfish, pirarara, carpa. Na bóia, pega-se os de superfície, como matrinxã, dourado, tilápia, piau e também bagre e carpa.

Para espécies menores, tilápia, piau e catfish, que oscilam de 500 gramas a 3 quilos, o ideal é usar vara de mão. Pacu, matrinxã, dourado, pintado, carpa-cabeçuda e pirarara somente no molinete ou carretilha. São peixes difíceis de tirar da água, por bravura ou tamanho. Pacu, matrinxã, dourado, pintado e pirarara costumam dar espetáculo e inflar o pescador de orgulho.

Peixes comuns em pesqueiros

- Tilápia: Presença obrigatória. Mas não é brasileira. Começou a povoar nossas águas no século passado, vinda da África. É uma dádiva dos deuses do Nilo: peixe sem frescura, permite cultura comercial, cruzamento, come de tudo, vive em água quente e pouco oxigenada, fácil de pegar, barato (exceto o filé da variedade Saint Peters), abundante e de carne deliciosa. Iscas: minhoca, massinha e salsicha.

- Carpa: Também estrangeira. Há três tipos nos pesqueiros: a húngara (ou espelhada), a capim e a cabeçuda. Espécie dócil, não oferece muita resistência, exceto a cabeçuda, pelo peso, pois ultrapassa 10 quilos. Sua carne não é muito apreciada, embora seja vendida normalmente. Iscas: as mesmas da tilápia.

- Catfish: Embora norte-americano, é o bagre mais famoso do pesqueiro e fácil de pegar. Enquanto uma crendice popular diz que sua carne tem gosto de terra, outros garantem ser bobagem. Como todo representante da família dos bagres, é carnudo, pouco espinho. Ideal para assar ou fazer moqueca. Iscas: massinha, salsicha, fígado de boi, filé de tilápia, bacon.

- Pintado ou cachara: No mercado, recebem sempre o nome de pintado. O primeiro, claro, tem pintas no corpo. Já o cachara é listrado, como tigre. Mesmo assim, é difícil diferenciar. Ultrapassam 10 quilos, numa boa. Um chef de cozinha disse certa vez que o pintado é o salmão brasileiro. Com razão. Esse bagrão cabeçudo tem carne nobre.

- Pacu e seus primos Tambaqui e Tambacu: Ótimos para se pescar. Fortes e briguentos, puxam a linha para todo lado da lagoa e dão trabalho para tirar da água. Pesam de 5 a 15 quilos. São parentes da piranha, mas sem a má fama. Carne razoável e vendida no comércio. Iscas: massinha, salsicha, coração de galinha, pedaço de fígado, goiaba.

- Matrinxã: Bastante esportiva e briguenta. Fisgada, dá saltos na água e trabalho para sair. Pesa de 3 a 10 quilos e sua carne, espinhosa ao extremo, não é muito apreciada. Iscas: massinha, salsicha, miolo de pão, goiaba.

- Dourado: Belo e voraz, é o rei da água doce brasileira. Dá saltos como a matrinxã. Sua carne é razoável e encontrável no mercado. Isca: a melhor é o peixe vivo, uma pequena tilápia, por exemplo, mas com muita fome também vem na salsicha.

- Pirarara: Nova nos pesqueiros e alguns nem a tem. Concorre em beleza com o dourado, com sua cor cinza/esbranquiçada, listras laterais amarelas e nadadeiras vermelhas. Um charme. Ao ser retirado da água, este bagrão brasileiro emite um som (buuuf!). Há relatos de que a pirarara ataca seres humanos, principalmente crianças, na natureza. Mas certamente não é para comer, talvez para demarcar território. Não tenho informações sobre a carne. Iscas: filezinhos de peixe, salsicha, fígado e até massinha.

Há vários sites sobre o assunto na internet, com endereços de pesqueiros. Cito dois: www.clickpesca.com.br e www.pescar.com.br.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Ainda resta o coração

Otávio Nunes

Fiz uma matéria este mês numa penitenciária feminina, cá, na capital paulista. A pauta abordou um programa de leitura para as presas ministrado por dois bibliotecários, mantidos por uma faculdade privada. Uma atitude interessante e bem-intencionada.

Uma vez por semana, a dupla visita a prisão e lê textos literários ou da imprensa e discute temas da atualidade ou do cotidiano, como família, filhos, crise internacional etc. Também levam música, encenações teatrais e outras coisas, sempre com a participação das presas interessadas. Tudo para estimular leitura e reflexão entre elas. Entrevistei a diretora-geral, a diretora de educação, os dois bibliotecários e quatro detentas partícipes das sessões de leitura. Pena que a frequência ao curso seja muito baixa: mais ou menos 40 mulheres num universo de quase 700. Mas antes alguns pingos no oceano do que baldes de areia.

Sentei-me a uma mesa, por causa do meu bloquinho de anotações, pois só uso gravador por ordem judicial. Tal equipamento é atraso de vida. Repórter tem de guardar informações no bloco e na cabeça. Lembro-me que quando era foca (iniciante na profissão) fiz uma entrevista com gravador. Gente, eu consegui esquecer o aparelho na mesa do entrevistado e voltei de mãos vazias à redação. Durante um mês, fui motivo de chacota no trabalho. Fiquei traumatizado e nunca mais usei gravador.

Voltemos à penitenciária. Eu entrevistei cada uma delas por cinco minutos, mais ou menos. Na verdade, eu estava com pressa porque faltava pouco para o meio-dia, hora do almoço delas. Aliás, naquele dia, elas iriam comer um peixe delicioso, cujo aroma incitava meu apetite. Pois bem, em cadeia geralmente o preso gosta de estar na fila do bandejão logo que começam a servir. Pelo menos foi o que ouvi de funcionários em algumas prisões do Estado em que já estive fazendo reportagens. Por isso, minha pressa se justificava.

A terceira presa sentou-se à minha frente e lhe perguntei, mas não de uma só vez, nome, idade, que tipo de crime o Estado imputou a ela e a pena recebida. Inesperadamente, ela começou a chorar. Uma situação atípica para mim. Já visitei uma dezena de penitenciárias no Estado, sem contar as unidades de menores infratores, sempre a fazer matérias sobre cursos, oficinas de trabalho, de artesanato, culturais e outros projetos de ressocialização do preso. Passei por muitos momentos de emoção, ouvindo homem, mulher, adolescente. Na verdade, era a segunda prisão feminina que eu visitava. No entanto, choro, até então, não. Por instantes, fiquei sem ação e ela, envergonhada, tapou o rosto com as mãos.

Esperei alguns segundos e procurei levantar seu astral. Autoestima é a característica humana mais escassa para quem vive atrás das grades. Disse a ela que não precisava ficar envergonhada. Podia derramar lágrimas à vontade, porque todos nós choramos em determinadas situações. “É sinal que você tem coração”, afirmei, e deu certo. Ela enxugou o rosto com as costas da mão e continuamos a entrevista.

Ela e outras duas colegas que ouvi foram condenadas por tráfico de drogas, a maldição de nossa juventude. A quarta entrevistada, a mais velha delas, cumpria pena por estelionato. Essa penitenciária feminina é de regime semiaberto, em que as presas podem trabalhar fora e dormir na prisão e também visitar parentes em datas comemorativas, como Dia das Mães, Natal, Ano Novo. Na verdade, quase todas estão prestes a ganhar a liberdade, pois já cumpriram a maior parte da pena em outras cadeias, as de regime fechado. Minha amiga chorona talvez volte para sua família ainda este ano.

O contrário já aconteceu, também. O dia em que o repórter chorou. Faz alguns anos, fui fazer matéria numa penitenciária de segurança máxima, no interior paulista, não lembro qual cidade. A pauta era sobre uma oficina de trabalho dentro da unidade. Era uma fabriquinha de cadeira, ou de roupa ou de boné, não me lembro ao certo.

No final da visita, como de praxe em minha forma de trabalhar, ouvi os presos da oficina. Apesar de oferecer apenas umas cinquenta vagas, num universo de mais de mil homens presos, a fábrica também acrescentava alguns pingos ao mar. O trabalhador faturava um trocadinho todo mês, ocupava seu tempo com algo útil, aprendia uma profissão e ainda reduzia sua pena: três dias de trabalho significam um a menos na condenação.

Um deles cumpria pena alta, não lembro, mas devia ser por volta de 20 anos. Estava há mais de 15 na cadeia. Seu crime, latrocínio. Não sou advogado, mas acredito que este ilícito seja um dos mais graves em nossos códigos. O infeliz tinha passado por várias penitenciárias. Era, até, sobrevivente do massacre do Carandiru, triste episódio da cidade de São Paulo ocorrido em outubro de 1992, quando 111 presos foram mortos por forças policiais, numa rebelião. Aliás, o tema virou livro e depois um ótimo filme de Hector Babenco.

Pois bem, o homem tinha mais de 50 anos e trabalhava na oficina. No final da entrevista, perguntei o que faria quando deixasse a cadeia. Ele me disse que não sabia, porque tinha perdido contato com os poucos parentes que deixara no mundo de fora, embora fosse casado e tivesse dois filhos. Há muitos anos não recebia visita, carta ou qualquer demonstração de apreço por parte de parente ou conhecido. Encerrei a entrevista naquele momento. Nada mais havia a perguntar.

Na volta à redação, dentro do automóvel da empresa, a lembrança daquele homem perdido no mundo veio à minha mente. Que futuro ele teria fora das grades? Quem iria esperá-lo na porta no dia em que ganhasse liberdade? Depois de muita pergunta sem resposta, um fio lágrima caiu de meus olhos. O fotógrafo, sentado a meu lado, perguntou o que acontecia. Eu disse, então: “um cisco caiu no meu olho”.

Um outro fato me chocou deveras, embora sem direito a choro, por parte do entrevistado ou do perguntador. Em matéria que fiz numa unidade de menores, que em São Paulo chama-se hoje Fundação Casa, a antiga Febem, perguntei a um garoto porque roubava. Envergonhado, ele me respondeu que começou a surrupiar o bem alheio por sugestão e insistência de sua mãe, que o incitava com o pretexto de não ter o que comer em casa. Incrédulo, questionei a veracidade da história com um dos professores que trabalhavam com o grupo de adolescentes. Ele confirmou. O menino roubava a pedido da mãe.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Oito de março


Otávio Nunes

“Maria, Maria, quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida” (Milton Nascimento e Fernando Brant)

Maria Aurelina levanta cedo, faz o café, vai à padaria comprar pães, acorda as crianças para irem à escola e prepara o café com leite delas. Despede-se dos filhos e se encaminha ao tanque, onde quilos de roupa a esperam. Na hora do almoço, refoga dois copos de arroz, pega na geladeira a vasilha com o feijão cozido no dia anterior, frita um ovo e come sozinha, na mesa da cozinha. Neste momento, escuta no rádio “hoje é oito de março, Dia Internacional da Mulher”. Verifica se a comida que sobrou vai dar para a janta e volta ao tanque. Horas depois, Aurelina enche três varais com roupas das crianças, do marido e algumas peças suas.

À noite, cozinha alguns bifes de carne de segunda. Seu marido, com um copo de cerveja na mão, reclama que a carne, que ele mesmo comprou, está dura, parece borracha. As crianças comem quietas. E Aurelina, finalmente, estatela o corpo no sofá para assistir à novela. Vai dormir depois dos filhos e espera que o marido volte bêbado do bar onde foi jogar sinuca e pif-paf. Dormem como dois tijolos, lado a lado.

Doutora Maria Beatriz veste seu conjunto bege, dá ordens aos empregados da casa, escolhe o uniforme das crianças, toma um copo de chá indiano, come duas torradas e chama o motorista. Num dia de extenso trabalho, ela participa de reunião com a diretoria, pela manhã.

Na hora do almoço, enquanto degusta um filé de robalo com molho de champingnon e salada de endívias chilenas, Beatriz conversa com o presidente do banco a respeito de um empréstimo para expandir sua produção. Liga duas vezes do celular para a secretária a fim de saber se sua audiência com o ministro da Economia já está marcada. Neste momento, a operadora telefônica emite mensagem no aparelho informando que é oito de março, Dia Internacional da Mulher. À tarde, ela atende quatro clientes, um secretário municipal e um padre da Opus Dei.

Maria Vesga é sacudida em sua cama pela sua colega de cela, que lhe informa que é oito de março, Dia Internacional da Mulher. Enquanto penteia seus cabelos num espelho velho e quebrado, Maria lembra de seus filhos que ficaram sob a tutela do Estado, no Juizado de Menores. Um deles, o menor, já foi adotado por uma família. O outro, espera num orfanato que sua mãe vá buscá-lo, um dia.

Come o pão com manteiga e bebe uma caneca de café frio, tão gelado como as paredes de sua cela. No almoço, o bandejão oferece arroz, feijão e carne moída. Maria Vesga, que adquiriu estrabismo na cadeia, só lembra de três dias em sua vida. Quando a polícia a prendeu em casa, quando o juiz pediu que ela se levantasse para ouvir a sentença de doze anos de prisão e da última vez que viu seu casal de filhos. Quem sabe, a partir de hoje, oito de março, ela acrescente mais uma data em sua escassa memória.


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Grama na sola do sapato


Otávio Nunes

O velho craque entrou no campo vazio e olhou para o estádio. Lembrou-se do tempo em que era aplaudido pela torcida. Cada bola roubada do atacante adversário rendia a ele várias palmas, assovios e apupos. Foi o maior zagueiro do seu tempo.

Pisou na bola e notou o material diferente. Não sabia se era de couro, ou não. Deve ser plástico, pensou. Pegou-a na mão e passou os dedos entre os gomos. Perfeita. Nem parecia ser costurada. Ou não era, mesmo. Pegou a bola, enfiou numa sacola de supermercado. Seria um bom presente para seu neto.

Ao passar na portaria, o guarda o revistou e chamou os demais seguranças, acusando-lhe de roubo. Sou Anselmo, o Paredão, o maior defensor que este time já teve. Ganhei 12 títulos, disputei duas copas do mundo. Você deve ter ouvido falar de mim. Não o conheço, não sou do seu tempo, respondeu o porteiro. Mas como o senhor é um velhinho simpático, deixarei ir embora, mas só leva a sacolinha de plástico e a grama na sola do seu sapato.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O que será que meu pé sonhou?


Otávio Nunes

Ontem, voltando para casa, sentado num banco de ônibus, com o corpo torto feito anzol e olhando o movimento das ruas, percebi que meu pé estava dormindo. Sensação esquisita. Parecia que um monte de agulhas estivesse me espetando ou um batalhão de formigas picando-me. Passou-me, então, pela cabeça. Será que, dormindo, meu pé sonhou? Sendo assim, o que ele sonhou?
Talvez ele quisesse estar em outro lugar, pisando em outras terras, outros países. Por ser extensão do meu corpo, é bem possível que, em seus contatos com o cérebro, seja conhecedor dos meus sonhos e minha vontade de largar esta vidinha besta, de pegar ônibus todo dia.
Coitado, meu pé deve estar cansado de caminhar sempre na mesma direção, sempre na mesma trilha. Quer conhecer outras plagas, sentir tipos diferentes de solos, como as areias do Saara, ou das praias gregas, pedregulhos dos Alpes suíços ou mesmo o limbo verde e escorregadio das montanhas da Bósnia, que circundam Saravejo, cidade maravilhosa, de tanta história e sangue. Meu pé bem que poderia estar sonhando pisar sorrateiro no tapete de folhas secas em volta das árvores grudadinhas, lado a lado, que tornam a Amazônia quase instransponível.
Meu querido dorminhoco estaria pensando em chutar o traseiro de políticos desonestos, demagogos e autoritários. O mesmo vale para qualquer cidadão que mereça tais adjetivos. Meu pisante (por que não?) deveria estar sonhando em chutar e conduzir a bola como os grandes do futebol. Jogar o mesmo que Pelé, Garrinha, Johan Cruyff, Franz Beckembauer, Diego Maradona, Michel Platini ou o deus magiar Ferenc Puskas.
Poderia meu pé ter sonhado que estava no estribo, cavalgando um manga-larga castanho, daqueles que relincham de forma estridente e bela. E, ao tocar o solo, emitem sons parecidos com as castanholas nas mãos de uma bela espanhola de Andaluzia. Ou talvez pisando no acelerador de um carro esportivo do ano, igual àqueles que passam nos comerciais de televisão, que custam valor inatingível à minha conta corrente.
Não sei o que meu pé sonhou. Mas ele sonhou. Tenho certeza. Afinal, é parte indissociável de mim.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Afogado em números


Otávio Nunes

Esta historinha idiota começou quando troquei de carro. Na negociação com o vendedor, dei meu veículo velho como entrada e completei o restante com minhas economias. Saí todo feliz da vida ao volante do meu carro novo, embora usado.
Logo depois parei no posto para colocar gasolina, pois as lojas têm o costume besta de vender carro com pouquíssimo combustível. Aproveitei para pedir ao frentista que também verificasse os níveis de óleo e água e calibrasse os pneus. Ao levantar-me para pagar pelo serviço, notei então a placa do meu novo carro e levei um susto. Os números eram iguais aos do meu automóvel anterior, na mesma ordem. As letras, não, claro. Se fosse tudo igual seria um clone, o que é ilegal. Meu Deus, que coincidência, pensei comigo.
Aqueles quatro números, nenhum repetido, começaram a modificar minha vida. Quase todo dia apostava a milhar no jogo do bicho, bem como as centenas e as dezenas formadas pelos quatro números. Os dias em que não conseguia jogar ficava com peso de consciência: “Será que vão dar meus números justamente hoje que não apostei?”
Cada vez que passava em frente a uma lotérica fazia também apostas nas diversas loterias de números. E ainda ficava olhando para as loterias de bilhetes a procura do meu número. A neurose era tão grande que às vezes tentava encontrar meu número em ruas e avenidas longas somente para ver que tipo de residência ou comércio funcionava no local. Olhava também placas de outros carros como se fosse possível achar mais uma igual a minha.
Por medo ou vergonha, não ousei contar a ninguém sobre a coincidência das placas, Minha mulher e meu filho nem notaram o fato. Ela, sempre distraída, e ele, muito pequeno para entender. No entanto, quando saíam comigo, eles viam algo de esquisito em mim , mesmo sem saber da minha paranóia com os quatro números. “O que você tanto olha nas ruas, querido?”, perguntava ela. “Pai, o senhor parece nervoso”, observava meu filho.
Dormindo ou acordado, vivia a sonhar com os números. A cada dia minha fixação crescia. Apostava em tudo, procurava pelos números em todo lugar. Rascunhava os algarismos em minha mesa de trabalho. Já estava dando na vista. Um de meus colegas de trabalho dizia: “Novamente, você e seus números. Está estudando matemática?” Até que ele tinha razão. Estava mesmo estudando análise combinatória pela internet. “Meu Deus, onde chegarei com esta mania?”, questionava.
Certo domingo, enquanto almoçava, formei os números no prato com fios de macarrão. Ante o olhar de surpresa de minha mulher, desfiz o horroroso arranjo. No vidro empoeirado do meu carro, desenhei os números. Na praia, escrevia os quatro na areia, como um Anchieta maluco. Todas as minhas senhas, de banco, internet, computador e outras, eram formadas pelos algarismos, mesmo quando tinha mais de quatro.
Pensei em trocar novamente de carro para me livrar da maldição dos números. Mas se trocasse seria por outro mais velho, pois não tinha mais economias, pois todo dinheiro que sobrava ia nas intermináveis apostas. E não ganhava nada. Minha superstição nos números era um fracasso total, uma tolice sem igual. Porém, não tinha forças psicológicas para romper definitivamente com aquela praga.
Num domingo pela manhã, quando voltava sozinho da casa de minha mãe, peguei intencionalmente um caminho diferente, por uma avenida longa. Iria rodar muito mais, gastar mais gasolina, somente para procurar meu número naquela avenida. E encontrei. Era um boteco. Parei em frente e aproveitei para tomar uma cachaça, no intuito de abrir o apetite para o macarrão de minha mulher.
Depois que bebi a pinga, os números apareceram na minha frente, dançando. Ora pareciam vestidos com camisas floridas, de turista americano no Havaí, ora de negro ou de branco, como pais-de-santo. Os quatro cantavam e zombavam da minha cara. Senti-me um idiota completo. Nervoso, balancei a cabeça, espantei os engraçadinhos e voltei para casa, com uma ideia resoluta.
Teria de romper totalmente com aqueles algarismos ingratos. Tanto fiz por eles, usei-os em tudo, fiz deles a razão da minha vida e em troca de tanta consideração me aprontam este papelão? Reduzem-me a nada. “Chega. Chega. Basta. Já me cansei de ser escravo de vocês”, gritei bem alto, dentro do carro. Era novamente um homem livre.
No dia seguinte, segunda-feira, pensei mais uma vez sobre o rompimento definitivo com meus quatro ex-amigos e achei que seria de bom alvitre dar mais uma chance a eles. Faria uma só aposta, com a milhar, no jogo do bicho. Se perdesse, como era de se esperar, teria a prova definitiva que aqueles quatro só me traziam azar, realmente. Depois, trocaria de carro, mesmo por um mais velho, mudaria minhas senhas, pararia de apostar. Enfim, esqueceria definitivamente aqueles imbecis.
E não é que a minha milhar deu no primeiro prêmio do bicho? Ganhei um dinheiro razoável, o suficiente para trocar de carro e pegar outro mais novo. Mas confesso abestalhado que estou em dúvida. Não sei se rompo com meus números. A não ser que eu encontre outro carro com os mesmos, novamente.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Serafim e seus filhos


Historinha baseada na música homônina de Ruy Maurity e José Jorge

- Papai, existem lobisomens?
- Não, minha filha.
- Então por que tem filmes na televisão que...?
- Filha, veja bem. Estas histórias são chamadas de lendas. Ou seja. Alguém inventa uma história, que será repetida para outras pessoas e outras e mais outras. Espalha-se. Mas, na verdade, são criadas por algum motivo, que na maioria das vezes a gente nem sabe. É a mesma situação que ocorre com a mula-sem-cabeça, saci, papai noel, vampiros e outros seres esquisitos.
- Então, porque inventaram o lobisomem?
- Tem pessoas que dizem que um homem transformava-se, em parte, em lobo, nas noites de lua cheia para pagar seus pecados ou então por praga de alguém. Não tenho certeza. Meu avô me contava uma história, que ele chamava de causo, sobre um lobisomem numa família.
- Como é a história, papai?
- Oh meu deus! É muito comprida e complicada. Não sei se você vai ter paciência.
- Pode começar.
- Está bom. Ouvi este causo várias vezes do meu avô, lá no interior, onde nasci. Coitado, ele já morreu há tanto tempo, muito antes de você nascer. Vou recordar a história de Serafim e seus filhos.
- Serafim?
- Sim, minha filha. Meu vô me contava que havia uma família de quatro homens e uma mulher. Eram o velho Serafim e seus quatro filhos: João Quebra-toco, Mané Quindim, Lourenço e Maria. Vovô me garantiu que conheceu a Maria, a única que sobreviveu das desgraças da família, quando tinha mais de 60 anos e vivia num asilo para velhos, esquecida de todos e do mundo. Meu avô trabalhou como faxineiro no asilo.
- O que é desgraça da família? E que o lobisomem tem a ver com a Maria?
- Desgraça é uma tragédia, acontecimento ruim. Muita coisa triste ocorreu com a família. Agora, quanto ao lobisomem, você tem de esperar o final da história.
- Mas...?
- Calma filha, vou tomar um café para aquecer a garganta e continuarei com a narração.
- Vai logo pai. Tô doida para conhecer tudo.
- Pois bem. Retomemos. Serafim era um fazendeiro viúvo, pobre e analfabeto. Não havia escola onde ele morava. Apenas Lourenço, o mais novo da prole...
- O que é isto?
- Ahn? Ah, sim. Prole? Prole é família. Então, vamos em frente, Lourenço era o único que sabia ler e escrever, embora muito pouco. Tinha aprendido com um padre que visitava a pequena cidade de vez em quando e lá ficava por algumas semanas, fazendo seus serviços religiosos, como missa, casamentos, batizados e outras coisas. Lourenço, que na época tinha mais ou menos quinze anos, gostou muito do padre e o visitava sempre, à noite, escondido do pai que considerava bobagem saber ler e escrever.
- Nossa! Pai!
- É verdade filha. Naquela época muitas pessoas pensavam assim. Infelizmente, até hoje tem gente com esta mentalidade. Mas o fato é que Lourenço, apesar da pouca idade, tornou-se o mais inteligente dos filhos. Sabia conversar, fazer contas complicadas, explicar quase tudo, lia livros de histórias para os irmãos e até escrevia cartas a pedido deles. Passaram alguns anos e Lourenço resolveu tomar uma decisão. Deixaria a família e partiria para bem longe, em busca de vida melhor.
- Certo ele, pai.
- Sim. Mas esta vontade foi a desgraça dele. O velho Serafim não gostou da idéia e exigiu que os outros filhos também não concordassem. “Filho meu não dança, conforme a dança.”
- Então, o que Lourenço fez?
- Não fez, minha filha. Apesar de pedir de joelhos que o deixassem ir embora, de nada adiantou. Ele jurou então que, qualquer dia, sem ninguém perceber, iria fugir. Naquele mesmo dia, à noite, o velho Serafim reuniu os quatro e disse que iriam para a floresta caçar capivaras e queixadas, o que faziam uma vez por mês.
- São bichos, pai?
- São. A capivara é parente do rato, porém bem maior e vive perto de rios. Já o queixada é da família do porco, mas é selvagem. Dizem que os dois animais têm carne saborosa. Mas hoje em dia é proibido caçar estes bichos e outros que vivem em florestas.
- Minha professora disse que a gente tem de preslevar os bichos.
- É preservar, filha. Preservar, quer dizer mantê-los vivos. Continuemos com a história. Nesta parte, meu vô contava: “Noite alta de silêncio e lua, Serafim o bom pastor de casa saía. Dos quatro meninos, dois levavam rifles. Outros dois levavam fumo e farinha”. Ainda neste pedaço de história, vovô, que viveu três anos na Bolívia, dizia assim: “Bandoleros de los campos verdes. Dom Quixotes de nuestro desierto”.
- Que língua é esta?
- É Espanhol.
- Que quer dizer?
- Não tenho muita certeza. Mas fala de pessoas que se aventuram na vida como Dom Quixote.
- Quem...?
- Já sei. Dom Quixote é o mais famoso personagem de livro do mundo. Ele foi criado por um espanhol chamado Miguel de Cervantes, um dos homens mais geniais que pisou neste planeta. Dom Quixote é um velho sonhador que luta contra inimigos invisíveis. Quer dizer, é um sonhador em busca de explicações para sua vida. Ou algo assim. Eu acho que Dom Quixote pode ser tudo, sonho ou realidade, depende da interpretação de cada um de nós.
- Acho que já ouvi falar dele. É aquele que anda a cavalo com uma lança na mão?
- Ele mesmo, junto com amigo Sancho Pança, na verdade um empregado, chamado escudeiro. Mas vamos continuar. Naquela noite alta, de lua mansa, os quatro mataram Lourenço. Maria não soube explicar por que. No entanto, havia atirado duas vezes no irmão. João e Mané, uma vez cada. O pai não teve coragem de puxar o gatilho. Esconderam o corpo e voltaram cabisbaixos para casa. Nem foram caçar.
- Pai, é muita ruindade.
- Verdade filha. O ser humano é capaz de coisas ainda piores.
- E o lobisomem?
- É agora. Maria contou para meu avô que Lourenço se transformou em lobisomem porque seu corpo não foi enterrado.
- Nossa pai, que história comprida.
- Estamos no fim. Se você não me interromper muito, termino logo.
- Huum...
- Pelo relato de Maria, ela foi a primeira vítima do irmão morto. O lobisomem Lourenço apareceu para ela, certa noite, e rogou uma praga. Disse que Maria ficaria grávida e teria um filho peludo, com dentes de cachorro. Realmente, ela ficou grávida, sem ter nenhum relacionamento com homem, garantiu a meu avô. Serafim, ao ver a filha naquele estado, expulsou-a de casa e ela se tornou prostituta, mulher que vende o próprio corpo aos homens. Porém, seu filho jamais veio ao mundo. Sua barriga murchou até voltar ao normal. Maria teve vários homens na vida. Mas nunca se engravidou. Os irmãos Mané Quindim e João Quebra-toco foram abordados pelo lobisomem, também à noite, numa lua cheia, e desmaiaram de medo. O primeiro morreu na hora e o outro agonizou três dias até perder a vida, também.
- Caramba, pai. O que aconteceu com Serafim?
- No final, até hoje não entendi bem, meu avô encerrava a história com a seguinte frase: “Serafim, depois que viu o filho lobisomem, perdeu o juízo e morreu sete vezes, até abrir caminho pro paraíso”.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Napoleão


Otávio Nunes

O marido entra em casa e escuta o reclamo da mulher. “Até que enfim você chegou. Estava com medo de ficar sozinha com nosso filho pequeno.” Ele desaba o corpo no sofá e pergunta “O que aconteceu querida?” Nervosa e a gesticular, ela conta que a casa do vizinho da esquina foi roubada por dois ladrões, que levaram eletrodomésticos, dinheiro e jóias.

“Há tempos que peço a você para comprar um cachorro, daquele bem feroz, para proteger nossa casa. O vizinho da esquina não tem um e veja só o que aconteceu”, justifica a mulher e assim começam mais uma discussão. O assunto da querela passa a ser o cachorro. “Você precisa comprar”, esbraveja a mulher.

Ele não gosta de bicho em casa. Inventa mil coisas para mostrar a ineficácia de um cão no quintal. “Faz barulho, cocô, come ração cara, arranha o carro. Enfim, é um transtorno.” Mas não tem jeito. Seus argumentos capitulam frente à insistência da esposa. No sábado seguinte, estão os dois num canil para escolher o bicho mais bravo dali.

“Gostei daquele negro. Tem cara de ruim”, diz a mulher ao dono do canil. O homem explica a ela que é um dobermann chamado Napoleão e se trata de um cão complicado, que ninguém se interessa. “É por isso que eu quero”, responde a mulher, resoluta. A contragosto, o marido leva Napoleão para casa, mas pede que o dono do estabelecimento o acompanhe. Sente medo do animal.

No domingo, ninguém sai de casa. Nem para comprar pão quente na padaria. Comeram pão murcho do sábado. Cada vez que alguém põe o pé para fora, no quintal, Napoleão rosna, mostra seus dentes pontiagudos e baba feito criança.

Na segunda-feira, a mesma coisa. O marido não vai trabalhar. Liga para o chefe e inventa uma desculpa qualquer. Os dois não agüentam mais ficar enclausurados em casa por causa de Napoleão.

“Vou dar um tiro neste maldito cachorro”, grita o homem. “Você não tem arma em casa. E mesmo se tivesse, duvido que faria isto. Você não tem coragem de matar nem o pulgão que infesta nossa horta de couve, que a esta hora o Napoleão já deve ter destruído”, observa a mulher.

“O que faremos?”, pergunta o marido. “Nada”, responde a esposa. “Não vê que agora estamos seguros? Com o Napoleão aí fora, nenhum ladrão entra em casa.”