quinta-feira, 24 de junho de 2010

Pousada do mistério

Conto policial de Otávio Nunes

Estava eu sentado na sala de espera do dentista folheando algumas revistas, enquanto esperava ser chamado. Na minha frente ainda tinha um jovem cabeludo acompanhado da namorada. Eles usavam tantos adereços no rosto, brincos e outros enfeites, que mais pareciam dois porta-alfinetes. Cada vez que se beijavam, e os metais se tocavam, eu temia por um relâmpago.

Peguei uma revista de turismo e comecei a admirar as fotos de lugares aonde, provavelmente, nunca iria, mas era um bom passatempo. De repente, numa reportagem sobre pousadas no litoral, vejo a foto de uma mulher que conhecia de rosto, porém não conseguia lembrar-me de quem se tratava. Ao ler o texto, constatei quem era a personagem.

Chamava-se Berenilde da Silva Quaresma, que fora esposa do meu advogado, o saudoso Doutor Quaresma, que tratou da papelada da minha separação, quase dez anos antes, e que depois se tornou meu consultor jurídico nos casos de adultério que eu investigava. Após a morte de Quaresma, nunca mais ouvi falar da viúva dele, a qual eu vi apenas uma vez, no dia do enterro.

Ao ler a reportagem, fiquei sabendo que a viúva tinha empregado bem o dinheiro que o falecido lhe deixou. Era agora proprietária de uma renomada pousada no Saco do Sapo, praia da cidade litorânea de Carumbéia das Taboas. E mais. Vivia com um sujeito de nome Amberlino, que não aparecia na foto.

Enquanto minha mente vagava em silêncio, a recepcionista do dentista chamou-me.
- Senhor Alípio Solimão, é sua vez.

Entrei no consultório e suportei vinte minutos de tortura siciliana, ao tratar um canal do dente, tão vasto quanto o do Panamá.

Já em casa, abri a geladeira e peguei duas garrafas, uma de água mineral, outra de vodka. Com o primeiro líqüido, tomei o antibiótico que o dentista me receitou e com o outro matei minha sede etílica. Claro que o álcool tiraria o efeito do medicamento. Mas deixei este detalhe chinfrim para lá. O importante é que a vodka iria me proporcionar alguns momentos oníricos. Comecei a ouvir música, o bolero de Ravel, que limpa meus ouvidos melhor que cotonete e alimenta meu espírito. Principiei, então, a pensar.

A morte do Doutor Quaresma até hoje não foi bem explicada. A polícia concluiu que ele morreu envenenado por arsênio. Ninguém conseguiu encontrar pista alguma que pudesse comprovar a presença do veneno em algum copo de água ou prato de comida. Ele morreu por volta das onze horas da noite, mas começou a passar mal quatro horas antes.

Geralmente, quando uma pessoa morre em circunstâncias que parecem assassinato, o primeiro suspeito é o cônjuge. Mas nada foi apurado na morte do meu advogado. A mulher, se culpa teve, saiu ilesa.

Desculpe-me leitor, você está lendo estas linhas e não sabe quem sou. Meu nome, como a recepcionista disse lá em cima, é Alípio Solimão. Sou detetive particular, especializado em casos de adultério. Acredito, porém, que ultimamente os corneados estão conformados ou sem dinheiro. Visto que há tempos não investigo um caso destes.

Meu jeitão? Tenho altura mediana, ligeiramente magro, calva iniciante, bigode ridículo, absorvo bebidas como toalha felpuda, gosto de literatura clássica e filmes antigos e minha idade é algo entre 47 e 52 anos. Estou separado há quatro anos e há meses nenhuma mulher aquece meus lençóis.

Sou o maior usuário da biblioteca de meu bairro, pois nem sempre tenho dinheiro para comprar meus livros. Naquele momento, tinha na estante Um Jogador, de Dostoievski, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, os quais iria devolver nos dias seguintes e pegar outro. Uso a biblioteca pública, também, pois acho que temos de usufruir ao máximo as pequenas migalhas que o Estado nos concede.

Para que meu gerente de banco não me encha o saco por causa da conta negativa, tenho feito alguns bicos na minha antiga profissão. Antes de me tornar detetive, fui contador, e dos bons. Trabalho, até hoje, para alguns comerciantes que querem ludibriar o fisco, faço declaração de imposto de renda, abertura de empresas e outras coisinhas burocráticas.

Tenho escritório de detetive no centro velho da cidade, onde o aluguel é mais barato, e divido uma sala com o beócio do meu sócio, que mal consegue ler um gibi inteiro. Justiça seja feita, o sujeito é bom na investigação e sempre pega os melhores casos. Os menores ficam para mim. Em relação ao beócio do meu sócio, sou como aquele peixe que nada ao lado do tubarão, alimentando-se das sobras do banquete.

Não pensem vocês que esta posição subalterna seja uma ferida na minha auto-estima. Já superei esta fase piegas de minha vida. Encaro os fatos de maneira prática, mas sei dosar meu pragmatismo com meu lado devaneador. Além do mais, foi com meu sócio beócio que aprendi a ser detetive.

Quando era contador de uma grande companhia multinacional, tinha dois problemas na vida: alto salário e mulher bonita. Torrava meu dinheiro em bobagens e suspeitava da fidelidade de minha esposa. Então, contratei um detetive, que é hoje meu sócio, para ver se minha desconfiança tinha fundamento.

Não vou entrar em detalhes, porque tal acontecimento me constrange deveras. Só digo que me separei e o Doutor Quaresma, assim o conheci, cuidou da papelada do meu divórcio. Deixei a empresa onde era contador, tornei-me detetive e acabei com os dois problemas que me afligiam. Hoje, não tenho dinheiro, tampouco mulher.

Passo minhas noites no boteco do Maneco, um português com bigode mais feio que o meu. Chego em casa trôpego, destilando mais vodka que uma cidade da Sibéria, leio algumas páginas de um livro e durmo na poltrona, babando como bebê e sem tomar banho. Quando acordo de manhã, pareço sobrevivente de terremoto.

Mas voltemos ao caso da morte do Quaresma. Achei muito esquisito a mulher dele morar numa pequenina cidade do litoral, como se escondesse de algo. Quanto ao fato de estar casada novamente, tudo bem. Já havia se passado um ano e meio da morte do marido, para o qual, aliás, não derramou nenhuma lágrima no dia do enterro.

Lembro-me, na época da morte do Quaresma, de ter conversado horas com o delegado encarregado do caso numa mesa do Bar do Maneco. Ele me garantiu que nada poderia ser provado contra a viúva. Mas também achava estranha a morte do advogado por envenenamento. Tinham vasculhado toda a casa, foram ao restaurante, onde ele almoçou, e a um café onde havia tomado um capuccino e comido um pão de queijo à tarde, após o expediente, no dia em que morreu. E nada. Nenhuma pista.

Quanto ao testamento do Quaresma, tudo ficou para a esposa, pois não tinham filhos. Ela herdou apartamento, casa de campo, chácara, aplicações financeiras e um seguro de vida polpudo. O tempo passou e o caso foi arquivado na polícia e na minha memória. Nunca mais soube da viúva...até ver aquela reportagem na sala do dentista.

Liguei para o delegado Uranino, porém ele estava em férias. E o outro, em seu lugar, era plantonista e substituto, não conhecia a história. Então uma idéia palpitou em minha mente. “Solimão, sua besta, já que está sem trabalho mesmo, como sempre, que tal passar alguns dias numa pousada na praia do Saco do Sapo, em Carumbéia das Taboas, e investigar a vida deste casal?”, perguntou-me minha consciência. E, como gosto de me relacionar bem comigo mesmo, aceitei a dica.

Alguns dias depois, recebi o dinheiro do farmacêutico, por um balancete contábil que havia feito para ele, e tomei o ônibus rumo ao litoral. Como estávamos fora da temporada de férias, não foi difícil alugar um chalé por três dias na Pousada dos Sonhos, esse era o nome do local. Até ganhei desconto.

A viagem foi longa, quatro horas e meia, e a única parada na estrada foi num restaurante que não vendia bebida alcoólica. Achei uma provocação, inconstitucional, mesmo. Levei comigo uma obra gigantesca que havia anos tinha vontade de ler, Paidéia, A Formação do Homem Grego, de Werner Jaeger. Um livro de mais de mil páginas, pesado como tijolo, porém um monumento à história dos homens que forjaram a maior civilização que o mundo ocidental conheceu.

Gosto dos gregos e tudo que os rodeia, de Homero a Aristóteles, ou, se preferirem, de Tróia à Macedônia de Alexandre, passando por Platão, Sófocles e Tucídides. Sua cultura está presente em toda civilização ocidental, levada pelo romanos. Até os bárbaros europeus, cujas línguas não descendem do glorioso latim, carregam muito da alma grega. Vão se acostumando comigo. Sou assim mesmo. Gosto de narrar minhas aventuras, mas divago bastante quando o assunto é História, Literatura e Artes.

Ao chegar na Pousada dos Sonhos, fui recebido pela proprietária, a Berenilde. Temendo que ela me reconhecesse, apesar do pouco contato no cemitério, ano e meio antes, raspei o bigode, que cultivava havia três anos, e mudei o penteado ao cortar o cabelo bem rente, como soldado americano em filme de guerra. Preenchi a ficha de hóspede com meu nome verdadeiro, apesar de ter três documentos com dados falsos, e também não menti na profissão. Era um contabilista autônomo em férias de outono.

Como já era tarde, disse que iria descansar algumas horas no chalé. Pedi uma dose de vodka, com uma rodela de tomate na borda do copo, e dormi por uma hora, roncando feito um porco. Assim que acordei, fui passear pela propriedade para ver se encontrava o marido dela, o Amberlino. Era ele quem mais me interessava.

Conversei um pouco com o jardineiro, um papo de esperar trem, daqueles “parece que vai chover, né?,” e fiquei sabendo que o Seu Lino tinha ido à cidade fazer compras e já estava na hora de chegar. Quinze minutos depois, uma camionete entrou na garagem. Era ele. Educadamente, apresentei-me como novo hóspede e ofereci-me para ajudá-lo a tirar as compras do veículo.

Com minha tradicional desenvoltura para cultivar novas amizades, qualidade que só demonstro quando estou investigando, levei as sacolas para a cozinha da pousada e já fiquei sabendo o cardápio dos três dias seguintes. Reparei que Amberlino tinha habilidade em mexer na cozinha, embora não fosse o cozinheiro. Ele me disse que tinha aprendido a mexer com talheres e prato, trabalhando como garçom e atendente de bares.

Arrastei-o ao balcão do bar para tomar cerveja. Aproveitei para beber mais um copo de vodka, aos sorvos. Percebi que ele era pelo menos dez anos mais jovem que a mulher e era uma pessoa simples, no vestir e no falar, quase rústica, bem diferente de Berenilde, que se comportava como autêntica mulher de classe média. Não formavam um casal a que costumamos denominar de normal. Outro fato interessante que notei foi sua subserviência à mulher. Naquele poleiro, com certeza, o galo era o último a cantar.

Casamento entre pessoas de classes sociais diferentes é muito comum em novelas de televisão. Na vida real, porém, é tão raro quanto vodka de boa qualidade. O normal é rico desposar rico, classe média com outro igual e pobre com pobre. Não precisa ser sociólogo para enxergar este fenômeno. Amberlino já tinha sido quase tudo o que a sociedade reserva para os que não têm posse ou cultura: servente de pedreiro, cobrador de ônibus, atendente de boteco, camelô, feirante, vendedor de filtros de água e outros ofícios malsucedidos. Portanto, a união ente ele e Berenilde tinha algo de estranho.

Depois de três cervejas e duas vodkas com tomate, resolvi encerrar o papo com Amberlino, para não despertar suspeitas, e continuar no dia seguinte. Ele me contou que iria pescar no Canal do Sapo, um braço de mar que quase corta a cidade em duas. Resolvi acompanhá-lo, embora jamais tenha fisgado sequer uma bota velha na minha vida.

No dia seguinte, fiquei com ele por três horas e quatro cervejas. Depois inventei que iria ao centro da cidade para comer uma pizza. Amberlino tinha pego duas tainhas e um peixe tão esquisito quanto o nome. Com meu jeito astucioso de conversar, como quem não quer nada, retirei mais algumas informações de seu passado, inclusive algo que me deixou bastante intrigado.

Ele me contou que tinha conhecido Berenilde havia dois anos, alguns meses antes da última Copa do Mundo. Eureka. Doutor Quaresma morreu, lembro razoavelmente bem, em agosto ou setembro, portanto, depois da copa, que sempre se realiza em junho ou julho. Logo, Amberlino e ela já eram amantes enquanto o Quaresma ainda vivo estava. Não gosto de coincidências, embora saiba que às vezes acontecem.

No dia seguinte fiquei fora e só voltei à noite para jantar e arrumar as malas, pois iria voltar para casa pela manhã próxima, com um volume de informações suficientes para prosseguir a investigação. Havia algo de comprometedor no ar.

Para não atiçar a desconfiança, conversei muito pouco com Berenilde. Nas poucas vezes em que papeamos foi para eu elogiar a comida, a pousada e a companhia agradável do marido dela. Nesta vida de detetive, aprendi a arte dos políticos, de elogiar sempre, mesmo nas condições mais adversas. Apesar dos parcos galanteios que fiz, percebi que ela carregava no semblante algo de misterioso, não sabia se malévolo ou não.

Ao chegar em casa e tomar uma dose de vodka, sem o tomate, que tinha acabado, comecei a raciocinar. O ideal seria conversar com o delegado, mas ele só voltaria no mês seguinte. Decidi, então, continuar a investigação sozinho. De posse de várias fotos do casal da pousada, tiradas com e sem o consentimento deles, sairia à caça de mais informações sobre os dois, principalmente de Amberlino.

Quaresma vivia com a mulher num prédio de dois apartamentos por andar e uma segurança intransponível. A muito custo, descobri o nome de duas pessoas que moravam no edifício. Uma delas havia comprado o imóvel do falecido advogado, a outra era vizinha de andar e fiquei na espreita esperando-as chegar, pois precisava falar com elas antes de entrarem no prédio. Foram dois dias de tocaia, mas consegui.

Infelizmente, nenhum dos moradores reconheceu a foto de Amberlino. O que comprou o apartamento, então, sequer conheceu Berenilde e Quaresma. Todo o negócio foi efetuado por intermédio da imobiliária. O vizinho, sim, lembrava-se bem de Berenilde e do falecido.

No entanto, o homem nunca tinha visto Amberlino na vida. Perguntei outras coisas e ele me disse que o que sabia tinha dito à polícia. Mesmo assim, com jeitinho, consegui que ele me contasse o que se lembrava dos antigos vizinhos. Berenilde, como se esperava, era uma mulher que saía de casa quase todos os dias, bem-arrumada, embora não trabalhasse. Quaresma, muito ocupado, não sabia de todas as andanças da mulher, apostava o vizinho.

Saí desconsolado. Tanto trabalho em frente ao prédio e nenhuma informação sobre Amberlino. Se os dois já eram amantes realmente, deviam se encontrar bem longe do prédio.

Procurei a antiga secretária do Quaresma, Verânia, que estava trabalhando num banco. Ela ainda se lembrava de mim, já que fui ao escritório do patrão dela várias vezes e nos cumprimentamos também no dia do enterro. Ao lhe mostrar a foto de Amberlino, uma gota de esperança percorreu minha garganta como se fosse vodka gelada.

A secretária já tinha visto aquele homem, porém não conseguia se lembrar onde. Supliquei-lhe que refrescasse a memória, mas não adiantou. Deixei-lhe meu cartão, esperando que ela me ligasse assim que recordasse do homem da foto, e fui embora.

No dia seguinte, enquanto eu estava lendo as últimas cinqüenta páginas de Paidéia, o telefone do meu escritório tocou. Era Verânia. Ela me disse que infelizmente não tinha se lembrado e talvez nem depois se lembraria do retratado. Chegou a confessar que provavelmente havia cometido um erro de avaliação ao dizer que se lembrava do rosto. Tentei argumentar, mas foi inútil. Ela desligou o telefone, pedindo-me que não a importunasse mais.

Pensei com meus botões. A secretária deve ter ficado com medo, o que é bastante plausível, visto se tratar de uma investigação que molestava o passado do seu antigo patrão e da esposa dele. E Verânia também era parte deste passado, pois trabalhou para Quaresma durante cinco anos, tempo suficiente para estabelecer vínculos de amizade com o casal.

Voltei à estaca zero. Não tinha a mínima idéia de como continuar aquele caso, justamente agora que já estava me apaixonando pela história. É assim mesmo. As investigações fortuitas em que me meto, aquelas em que não há ninguém me pagando, me proporcionam prazer inestimável. Fazem meu cérebro continuar a funcionar, minhas pernas a andar e muito botecos por visitar.

Não gosto de me sentir ocioso. Como diz o beócio do meu sócio, “táxi parado não ganha viagem”. Meu sócio gosta tanto de frase feita quanto o pára-choque de um caminhão. Mas, neste aspecto, ele estava pleno de razão.

Voltei ao livro sobre a formação do homem na Grécia antiga. Acho que nasci na época errada. Deveria viver na Atenas dos séculos IV e V a.C, mesmo correndo o perigo de ouvir os discursos inflamados de Péricles e presenciar as brigas entre Sócrates e Xantipa.

Duas semanas depois, procurei o delegado Uranino, que tinha voltado das férias. Uma observação, todos os irmãos dele receberam nomes de planetas do sistema solar. O pai deles chamava-se Galileu e era astrônomo amador. Jamais pôde freqüentar o curso universitário de Astronomia. No entanto, certa feita, contou-me Uranino, entre um copo e outro no Bar do Maneco, seu pai chegou a vender a casa para comprar um telescópio alemão, fabricado pela Copernikus Deutsch. Pagou aluguel por vários anos, mas toda noite conversava com os astros.

Uranino estava tão bronzeado que mais parecia um filé de frango grelhado.
Infelizmente, ele não quis se encontrar comigo no Bar do Maneco. Conversamos na delegacia mesmo. Contei-lhe tudo, sem omitir nada. No fim do relato, ele cofiou a barba e me garantiu que iria tentar destacar um investigador para verificar os fatos. Embora fosse um homem dedicado, Uranino dispunha de poucos homens para muito trabalho. Além disso, tratava-se de um crime antigo, arquivado.

Para ajudá-lo, deixei algumas fotos do casal Amberlino e Berenilde. Neste momento reparei que não tinha mais a única foto em que aparecia o nome Pousada dos Sonhos atrás e sobre o casal. Sem querer tinha entregue aquela a Verânia. A nenhuma das pessoas que ouvi mencionei o fato de Amberlino e Berenilde estar juntos e morar naquela cidade só a Verânia. Pensei em trocar a foto com a secretária, mas ela me pediu para não importuná-la novamente...

Fui embora para casa, digo, para o Maneco, com a sensação do dever cumprido. Nada mais me restava a fazer, se não beber vodka e ler clássicos da literatura. Naquele dia, pela manhã, tinha emprestado, da biblioteca, Guerra e Paz, de Tolstói. Estava atravessando uma fase de ler livros longos e intermináveis.

Sou assim, como a lua. Tenho várias fases. Algumas criativas e produtivas, outras totalmente volúveis. Tive uma época em que devorava livros policiais, até que comecei a adivinhar o assassino e parei. Até hoje acho que Sherlock Holmes, de Conan Doyle, e Sam Spade, de Dashiell Hammett, são os melhores detetives que a literatura criou. Quanto ao famoso Hercule Poirot, de Agatha Christie, é fantasioso por demais. Parece mais uma máquina de calcular que ser humano. Sherlock, também. Mas este eu perdôo, por ser um dos pioneiros da dedução e possuir um charme especial. Seus diálogos com Watson são impagáveis.

Não posso me esquecer também de minha fase dedicada a Edgard Alan Poe. Quando li uma pequena biografia sua, que dizia ser ele um beberrão, já me simpatizei de imediato. Seu poema O Corvo até hoje sei de cor. É uma dos textos mais inquietantes que já li. Seus contos fantásticos, também.

Menciono ainda meus conterrâneos. Tive fases de Guimarães Rosa, Machado de Assis, João Ubaldo, Érico Veríssimo. Por falar neste último, ninguém me tira da cabeça que o genial colombiano Gabriel Garcia Marquez bebeu na fonte do gaúcho autor de O Tempo e o Vento. Nunca li crítica a este respeito, mas vejo semelhança entre ambos. E como o brasileiro veio bem antes ao mundo, minha teoria torna-se ainda mais admissível.

Dormi mais uma noite babando na poltrona e com Tolstoi caído ao chão. Fui acordado pelo telefonema do delegado Uranino. Fiquei estarrecido ao saber que Berenilde tinha sido assassinada havia quatro dias. Tomei um banho de gato, mudei de roupa rapidamente e fui à delegacia.

Uranino me contou que o corpo de Berenilde foi encontrado dentro de seu carro na estrada que liga a vila de Saco do Sapo ao centro de Carumbéia das Taboas. Havia sinais de luta corporal dentro do veículo e apenas um tiro, na garganta, foi suficiente para dar fim à vida dela.

O mais estranho de tudo. Algumas horas antes, a viúva de Quaresma tinha ido ao banco, de onde sacou uma quantia vultosa em dinheiro vivo. Ela estava acompanhada de outra mulher, que ficou do lado de fora do banco. Como o saque era alto, ela tinha combinado previamente o dia da retirada com o gerente, pois aquela agência não costumava ter tanto dinheiro nos cofres. Quanto a Amberlino, seu álibi era perfeito. Ficou na pousada o dia inteiro, com testemunho dos empregados.

Continuei a encher o delegado de perguntas, se bem que ele não tivesse respostas para todas. Fiquei sabendo que uma das câmeras do sistema de segurança do banco, a externa, tinha gravado ligeiramente o rosto da mulher que acompanhava Berenilde. Mas a fita estava nas mãos do delegado de Carumbéia, encarregado do caso, como era de se esperar.

“Nada posso fazer”, assegurou-me Uranino, que me pediu para não interferir nas investigações, visto que o delegado local não era nada amistoso, “como eu sou com você”, disse-me Uranino.

Ele contou-me que o delegado de Carumbéia já estava sabendo de todo o caso envolvendo Berenilde, Quaresma e o misterioso Amberlino, o qual ninguém sabia como havia entrado na história. Uranino fez-me jurar que eu não iria me intrometer na investigação. Asseverei que iria ficar quietinho no meu canto.

Mas não cumpri a promessa, como tantas outras que fiz na vida. Já garanti a mim mesmo parar de beber, de dormir tarde, de esquecer a toalha molhada na cama, acordar cedo, fazer exercícios, ir ao médico regularmente, comer bem, deixar a vida de detetive e voltar à contabilidade, arrumar outra esposa... Não consegui. Mas continuo a enganar a mim mesmo e achar que sou capaz de realizar pelo menos a metade destes compromissos.

Saquei o que ainda tinha em minha conta bancária e tomei o ônibus a Carumbéia das Taboas. Antes de embarcar, ainda de estômago vazio, sem tomar o café da manhã, impregnei-me de duas vodkas, sabendo que a parada no caminho não vendia bebidas alcoólicas.

Abri as páginas de A Grande Arte, de Rubem Fonseca, e dormi feito um urso no inverno, com a cabeça amparada no vidro da janela. Fui acordado, babando no vidro, pelo motorista na rodoviária da cidade, à uma hora da tarde. Comi um prato feito num restaurante popular e fui para a delegacia.

Foi difícil convencer o escrivão de que era importante conversar com o delegado e ver a fita da câmera externa do banco. Fiquei sentado duas horas na sala de espera, até que no final do expediente o homem da lei me recebeu.

Contei-lhe tudo que sabia e pedi para ver a fita. A imagem era a pior possível e ainda havia um poste na frente da mulher, tapando-lhe parte do rosto. O aparelho de vídeo da delegacia era ruim. Não tinha aqueles efeitos que os filmes americanos mostram, como a aproximação da imagem no rosto da pessoa até ser possível a identificação. Reparei que havia uma mancha vermelho ao redor dos olhos da mulher, Ou será que não? Tinha um palpite a respeito de quem era a mulher, mas não consegui provar. Aliás nem mencionei ao delegado minhas desconfianças.

O delegado de Carumbéia me contou, antes de eu ver a fita, que um dos empregados da pousada presenciou uma discussão de Berenilde com alguém no telefone dois dias antes de sua morte. A mulher se queixou e chorou, no aparelho, dizendo que não seria fácil juntar aquela quantia de dinheiro e xingou a pessoa, que estava do outro lado da linha, várias vezes de desgraçada e chantagista. A mulher atrás do poste era, provavelmente, a autora da chantagem e assassina de Berenilde. Voltei para casa novamente de mãos vazias, como um retirante.

O mistério de Amberlino continuava a latejar em minha mente. Não conseguia entender como ninguém sabia quem era ele, tampouco como tinha entrado na trama. Seguindo uma receita que aprendi num filme antigo, do estilo noir, saí de casa disposto a percorrer o mesmo trajeto que o doutor Quaresma fez no dia de sua morte.

Comecei a partir do prédio onde o meu advogado trabalhava e entrei no mesmo restaurante em que ele almoçou naquele dia e no mesmo horário. Pedi um prato feito, com fígado acebolado, cerveja e vodka. Enquanto o prato não chegava, eu abri o envelope pardo com as fotografias que tinha tirado na Pousada dos Sonhos. Fiquei alguns segundos com o rosto de Amberlino em minhas mãos.

O garçom trouxe meu prato feito, colocou à minha frente e perguntou se eu conhecia aquele rapaz da foto. Eu disse que sim e questionei sobre a pergunta dele. Meio surpreso, ele me contou que aquele homem da fotografia tinha trabalhado na cozinha do restaurante. Quase caí da cadeira e derramei metade da vodka na gola da camisa.

O próprio Amberlino me disse, na pousada, que havia trabalhado como auxiliar de cozinha em bares e restaurantes. Durante todo o tempo a resposta sobre aquele homem esteve perto de mim. Xinguei a mim mesmo por causa da minha cegueira. Não é à toa que o beócio do meu sócio é melhor investigador que eu. Ele teria desvendado a identidade de Amberlino logo no início das diligências.

Ele, o meu sócio, não conhece nada sobre a Grécia antiga, jamais iria ler Victor Hugo ou Lima Barreto, não fala uma palavra de latim. No entanto, é um mestre na arte de descobrir quem deseja permanecer oculto. Eu, apesar de chamá-lo de beócio, tenho ainda muito a aprender com ele.

Comi às pressas meu prato feito e conversei longamente com o dono do restaurante que me forneceu várias informações sobre Amberlino, inclusive o endereço onde ele morava na época em que trabalhou na cozinha do estabelecimento, por aproximadamente seis meses. Sua morada era uma pensão numa casa de cortiço. Ambiente tenebroso que mais parecia uma estalagem francesa anterior ao Iluminismo.

A dona da pensão me contou que Amberlino era calado e parecia sempre estar com medo, assustado. Tinha poucos amigos no local, o qual usava somente para dormir, mesmo assim algumas vezes pousava fora. Fiquei mais feliz ainda quando a mulher reconheceu Berenilde na foto. A esposa de Quaresma, apesar de jamais ter pisado sequer na calçada da pensão, costumava se encontrar com Amberlino numa praça ali perto, dentro do carro, sempre usando óculos escuros, mesmo se não houvesse sol.

Certa feita, contou-me a pensionista, ela perguntou a Amberlino quem era aquela mulher misteriosa, bem-trajada, dentro de um veículo novo que o esperava na praça, embaixo da paineira. O rapaz disse apenas que era uma amiga e falou de um jeito tão agressivo que desencorajou a pensionista a fazer outros questionamentos sobre o fato.

Estava na cara que Amberlino era o assassino de Quaresma. Tinha colocado veneno no prato do meu advogado, quando trabalhava no restaurante. Talvez a mando de Berenilde. O dono do estabelecimento concordou comigo que havia a possibilidade do fato ter ocorrido, mas não gostou da idéia de se submeter novamente às investigações policiais.

O comerciante não estava disposto a colaborar com a polícia, principalmente porque suas contas com a prefeitura estavam em desacordo com a lei. Quanto a isto, lhe garanti, “eu resolvo”. “Deixo seu nome mais limpo que a sola do pé de um bebê”, disse-lhe. Assim arrumei mais um cliente para meus trabalhos de contabilidade.

Um dia depois de ter visitado a dona da pensão onde Amberlino morou, liguei para o delegado de Carumbéia e contei o ocorrido. Ele me disse que as informações eram ótimas e que iria pôr um de seus homens no caso. “Mas a partir de agora cuide de sua vida e deixe estes assuntos para a polícia”, intimidou-me.

O tempo foi passando. Eu comecei a investigar casos pagos de adultério, que afinal de contas é o meu ganha-pão. Fiz também vários trabalhos de contabilidade e o caso de Quaresma foi ficando em segundo e terceiro planos.

Quatro meses depois liguei para Carumbéia e o delegado me contou que o crime tinha sido arquivado, sem provas. Na verdade, ele estava mais preocupado com os casos de roubo a turistas em sua cidade. Assim, preferiu pôr seus homens na rua à cata de ladrões pé-de-chinelo em vez de resolver a morte de Berenilde.

Mas até que ele foi útil. Contou-me que Amberlino era o beneficiário do seguro de vida de Berenilde e que já tinha recebido uma boa soma em dinheiro, vendido a pousada e sumido no mapa. A polícia não tinha provas de como incriminá-lo. “Nada pudemos fazer”, afirmou o homem da lei em Carumbéia.

“Deixe o caso para lá, Solimão, sua besta quadrada” inquiriu-me minha consciência e resolvi, então, cuidar de minha vida, que carecia de mais atenção.

Meses e mais meses depois, outro dente meu começou a doer e fui novamente ao dentista. Enquanto esperava ser chamado para o ritual de suplício que envolve um tratamento de canal, folheava algumas revistas de turismo. Numa reportagem extensa sobre praias de nudismo, vejo a foto de Verânia e Amberlino, proprietários de uma pousada no local.

Na casa, os hóspedes também podiam andar despidos. Mas o casal vestia roupas coloridas, sorria com os rostos bronzeados e bem-nutridos de quem entrou em acordo com o astro rei e come frutos do mar todos os dias. Reparei que Verânia ainda usava óculos de aros redondos e vermelhos e tinha os cabelos compridos como no tempo em que trabalhava para Quaresma e no dia em que me atendeu, no banco

Eu sabia, todo o tempo, porém não tinha como provar. A mulher do vídeo a que assistira na delegacia de Carumbéia era Verânia, a chantagista e assassina de Berenilde. Logo depois da morte da viúva de Quaresma, liguei para o banco onde Verânia trabalhava e informaram-me que ela não mais estava lá e ninguém sabia seu paradeiro.

Na fita, ela estava de cabelos curtos e os traços vermelhos em volta de seus olhos eram seus óculos. Ela e Amberlino tramaram a chantagem e a morte de Berenilde. Como os dois se conheciam? Provavelmente nos tempos em que ele trabalhava no restaurante, que ela também freqüentava.

Quando eu lhe deixei a foto de Amberlino e Berenilda, que mostrava o nome da pousada, a idéia da chantagem deve ter vindo à sua mente. Por isso ela não me informou quem era o homem da foto e pediu-me para não mais importuná-la.

Com a foto do casal nas mãos, Verânia descobriu que Berenilde e aquele homem tinham algum tipo de culpa na morte de Quaresma e agora estava chantageando para conseguir uma parte da fortuna que a ex-viúva do advogado tinha herdado. Pegou o dinheiro e matou Berenilde dentro do carro. Mas, e Amberlino, porque ele se juntou à assassina depois? Isto eu ainda não sabia.

Não liguei para o delegado, tampouco para Uranino. Procurei imediatamente a seguradora de Quaresma e de Berenilde, que era a mesma. Conversei com o diretor de investigações da empresa e resolvemos o caso. Verânia e Amberlino foram presos.

Realmente, ele tinha envenenado Quaresma a mando de Berenilde, que lhe entregou o arsênio. Fora Amberlino também quem a convenceu a ceder às chantagens de Verânia. Ele só tinha a lucrar. Com a morte de Berenilde, ficaria com suas propriedades e mais o seguro. Ele e Verânia fizeram tudo certo, até o dia da reportagem sobre nudismo. Os dois não imaginavam que meu dentista fosse entusiasta e assinante de revistas de turismo.

Pelo meu trabalho, a seguradora pagou-me uma boa soma em dinheiro, valor que só ganharia em um ano de investigações e balancetes. Além disso, passei a ser colaborador da companhia em outras investigações sobre fraudes em seguros. Como neste País tem mais vigarista que pé de alface, terei trabalho para os próximos dez anos, até minha aposentadoria.

Neste momento, estou em casa, ouvindo o Bolero de Ravel, interpretado pela filarmônica de Berlim. Em minhas mãos, um copo de vodka russa genuína, que comprei num importador de bebidas. A maravilha, fabricada em São Petersburgo, trouxe-me à memória os contos de Tchekhov.

Com o dinheiro em conta, estou pensando em fazer um check-up médico, montar escritório próprio, sem depender do beócio do meu sócio, deixar de beber, arrumar namorada, tomar banho antes de dormir, comer algo melhor que ovo frito, renovar o guarda-roupa e comprar a coleção completa de Fernando Pessoa, com todos seus heterônimos.

Mas por enquanto quero gostar de leve na língua a minha vodka digna dos czares e dos primeiros bolchevistas. Termino parafraseando Scarlett O’Hara, em E o Vento Levou: “Amanhã eu penso em outras coisas.”

FIM

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