terça-feira, 28 de setembro de 2010

Memórias de uma vira-lata


Pronto, au au, mais um cachorro no mundo. Muito prazer. Sou o quarto de uma ninhada de oito filhotes e minha mãe não tem teta suficiente para tanta boca. No dia seguinte, ela come os dois mais fraquinhos e aí então passo a me alimentar melhor, com menos concorrência. Não sei por que ela devorou meu dois irmãozinhos. Talvez fome, mesmo, ou controle de natalidade, para poupar suas mamas delicadas de tanta mordida ou ainda por temer que os dois não sobrevivessem... Meu pai? Sei lá. Minha mãe desconhece por completo. Essa história de a fêmea saber quem é o pai é coisa dos humanos que inventam mil histórias para justificar seus enganos e dúvidas. No universo canino não há tal preocupação.

Como nasci macho, jamais terei a oportunidade de passar pelo sofrimento de mamãe, ou seja, o destino do parto e da criação, reservado às fêmeas. Mas colaboro em muito pela procriação da espécie. São tantas as aventuras na rua, que eu devo ter mais filhos que um xeque árabe. No entanto, não conheço nenhum de meus rebentos, que devem estar na rua, como eu, ou já se foram.

Semanas depois do meu nascimento, um homem aparece em nosso cantinho, no meio do mato, e leva metade da ninhada. O mesmo ocorre no dia seguinte comigo e uma irmã. Mamãe, fraca por ter gerado tanto leite, não tem força para impedir nosso sequestro, apenas late e grunhe, mas contenta-se em ficar com apenas uma companhia. Nunca mais os vi e sou separado de minha irmã, também, semana depois.

Meu primeiro dono chama-me de Rex, um dos nomes mais comuns para cachorro. Nossa senhora, que falta de criatividade. Bem, poderia ser pior. Imagine Bob, Lulu ou Dog? Meu Deus! E fica Rex, mesmo. Como dizem que miséria é igual a jabuticaba doce, uma só não vale a pena, tem de ser um monte de uma só vez, meu dono é tão pobre quanto eu. Um velhinho aposentado e solitário, que passa a maior parte do dia no boteco e cozinha muito mal. Ele só me dá restos de comida, como arroz queimado, feijão azedo, batata cozida, verduras, pão amanhecido. Olha só. Ele quer me transformar num vegetariano? Num natureba. Além disso, conversa pouco comigo, apenas assovia e me chama: “venha cá seu tomba-lata pulguento”.

Certa dia, cheiro o lixo de casa e farejo lá dentro alguma sobra de carne e começo então a furar os sacos. O velho fica doido e me faz passar fome e sede dois dias em seguida, como castigo. Ele me amaldiçoa e diz que eu só quero saber de carne. Por que todo dono de cachorro fala isso? O que ele espera? Cão é carnívoro, parente do lobo, da raposa, coiote, chacal, do... Nascemos assim.

No terceiro dia, ávido por qualquer coisa para comer, devoro o arroz, feijão e jiló que ele me dá. Jiló? Isso mesmo. É sacanagem do velho, pois na hora em que estende minha latinha de comida, segreda-me de maneira cínica: “você vai ver como a vida é amarga, realmente, seu vira-lata furador de saco de lixo”. Suprema humilhação. À noite, aproveito que ele chega bêbado e escapo para a rua, assim que abre o portão e sumo. Ele tenta correr, mas o infeliz está cambaleante, só é capaz de ensaiar um passo e chega a segurar na grade para não cair na calçada. Balança mais que pêndulo no relógio. E eu ganho o mundo.

Há tempos, eu matuto sobre viver na rua. Cada vez que avisto outros vira-latas lá fora, o desejo de liberdade flui em minhas veias e meu focinho fica mais gelado que sorvete. Não sei a relação entre uma coisa e outra. No dia em que fujo, não imagino as agruras que encontraria do outro lado do portão. São anos de fome, frio, pulga, briga, mordida... e fêmeas aos borbotões.

Com o passar do tempo, já bem longe da casa do meu primeiro dono, arrumo uma turminha legal, pena que só existe uma fêmea entre nós, razão de muita desavença, e festa, também. Vivemos cheirando ela o dia todo para descobrir a época do cio. Não tarda para que eu me torne o líder daquela cachorrada e delimito o melhor poste do bairro como território meu, só meu, soberano. Ninguém ousa fazer xixi naquele poste, só eu. Está localizado numa esquina bastante movimentada do bairro.

No entanto, um dia, um automóvel em alta velocidade bate no meu poste e o derruba. Eu me encontro a poucos metros do acidente e quase sou pego pelo carro. No momento em que o motorista sai do veículo, ainda tonto e trôpego, não titubeio. Nervoso pela perda da propriedade tão querida e necessária à minha vida, rosno para o homem, mostro-lhe meus dentes careados, mais ainda pontiagudos, e avanço sobre ele, decidido a fazer em seu pescoço o mesmo que fez no poste. O infeliz deve estar correndo de mim até hoje, sem entender o porquê. Ora, seu idiota. Já tenho pouca coisa nessa vida e você ainda derruba meu poste preferido? Mudo de bairro, levo a fêmea comigo e organizo outra turma.

Apesar da eterna fome, a vida é gostosa. Pela manhãzinha, vistoriamos as calçadas em busca de saco de lixo, antes que o caminhão recolha. Só deixamos incólumes aqueles guardados em lixeira alta. Mas, se baixa for, não tem perdão, rasgamos e nos fartamos do conteúdo. Os donos ficam loucos, jogam pedra, xingam e nós corremos rindo da cena. O dono da padaria às vezes joga restos de comida para nós. Como paga, a gente evita violar o lixo dele. Vira-lata também tem ética. “Au, au.”

O que mais me surpreende nessa vida é ver quer o homem, este ser tão poderoso, que acredita governar o planeta, fauna, flora e mineral, também pode se transformar num vira-lata. Muitas vezes, disputo saco de lixo com pessoa esfomeada.

O que mais me agrada, no entanto, é perseguir cães de raça. Claro, desde que seja menor do que eu. Cão fila, dog alemão, sem chance. Fico longe deles. Certa vez, vislumbro uma madame passear com seu peludinho, branquinho, no parque. Abordo os dois aos latidos e os assusto. A mulher corre para um lado e, ao soltar a cordinha, o totó vai para o outro lado e eu no encalço dele, feroz como leão a perseguir o antílope. Ao acuar o poodle, eu o cheiro inteirinho e descubro que é cadela. Adivinhe o que acontece. Isso mesmo. Acabo com a pureza da pequena e singela nuvem de algodão e ainda lhe dou dezenas de pulgas de presente, para ela não se esquecer de mim. Depois eu a deixo com sua dona, que nada desconfia.

Passam-se alguns meses e começo a sentir algo estranho no corpo. Uma coceira infernal, como nunca antes. Sou um verdadeiro hotel de pulgas, mas conheço a mordida delas. Geralmente, elas picam em lugares alternados, ora no meu bumbum, ora na barriga, no pescoço, na perna. Mas agora é diferente, o desconforto é no corpo todo. Uma coceira incessante. Agora sei o significado do velho ditado “não procure sarna para se coçar”.

Demorou pra canalha da sarna me pegar. Também dou muita moleza ao azar. Sou deveras desmazelado e promíscuo. Não posso ver um igual por perto que já me aproximo para cheirar a genitália à procura de fêmeas. Os humanos também são assim, só não cheiram porque não têm olfato desenvolvido como nós e reconhecem a fêmea visualmente. Ponto para eles e outro para nós.

Cada vez que me coço, arranco um chumaço de pelo em minha pata e filetes de sangue na ponta das unhas. A queda de meus pelos deixa à mostra minha pele rósea. Em alguns lugares do meu corpo, aparecem feridas com sangue exposto. Temo que meu fim tenha chegado. Cadê meu testamenteiro? Então, surge-me a idéia de voltar ao bairro antigo e procurar o dono da padaria que me dava comida. Talvez ele ainda se lembre de mim. Não dá certo, porém. Em frente à padaria vejo uma faixa: “Sob nova direção”. Deito-me, então, num canto, atrás do muro e cochilo várias horas de tanto cansaço, sede e coceira. Fome, não sinto.

De repente, sou surpreendido por dois garotos que me cobrem com trapo velho, me colocam dentro de num carrinho de mão e me levam. “Devem ser os coveiros do cemitério ou anjos que me transportam para o céu. Só faltam as trombetas... Não tenho energia suficiente para reagir.

Com um pincel enorme, o pai de um dos moleques lambuza-me inteiro com líquido preto, viscoso e fedorento. Depois, os meninos colocam a coleira em mim (há quanto tempo meu pescoço não experimenta uma coleira?) e me levam a um quintal baldio. Improvisam a casinha com papelão e madeira velha e me deixam lá para que o produto seque. Um deles me batiza de Capitão, o segundo nome de minha vida. Gostei. É a melhor patente que existe. A mais central de todas, já que está longe do soldado raso e também do general, “au au”.

Ao meu lado, deixam latinhas de água e comida. Alimento-me meio a contragosto, pela ausência de fome, e percebo que é ração. O único atrativo de tal alimento é o aroma de carne, adicionado à massa para nos enganar. Ouvi dizer que os humanos também comem algo parecido, a que chamam hambúrguer.

Antes de dormir novamente, pois é a única necessidade que sinto no momento, lembro-me que certa vez quis conhecer a tal ração especial que os cães “de família” comem. Passei em frente a uma casa, com o portão sem fechadura, e notei que o cãozinho lá dentro, no quintal, saboreava tal alimento. Empurrei o portão com meu focinho, espantei o baixinho com uma mordida na orelha e devorei a ração dele. Não achei tão ruim. Mas, como passo fome desde que nasci, não posso escolher comida. Não sou gourmet. No entanto, se possível for, prefiro sempre um bom e carnudo filé, mesmo estragado e cheio de gordura. Não tem problema.

Da minha casa de papelão, vejo outros vira-latas lá fora, aparentemente bem mais saudáveis que eu. Percebo, então, que estou no fim da picada realmente, por que nenhum deles me reconhece. Eles até evitam se aproximar de mim por causa da sarna e do odor nauseabundo a exalar do líquido que me lambuza. Não reclamo, pelo menos durmo sossegado.

No outro dia, os garotos vêm me visitar, com nova água e ração.
Tomo, sem querer, mais alguns banhos daquele produto repugnante e noto, alguns dias depois, que meu pelo volta a crescer e a coceira some aos poucos. Não lembro quanto tempo permaneço naquele quintal, pois durmo quase o dia todo. Só sei tratar-se de um período bem longo. Quando os garotos percebem minhas melhoras, um deles resolve me adotar. Porém, seu pai, o mesmo do liquido fedorento, se nega a me criar. Noto então que é hora de partir, novamente. Para não ser visto, impedido ou mesmo magoar os meninos, abandono o local somente à noite, a passos lentos.

Ando ao relento a noite toda, sem destino ou bússola. Aproveito para respirar o ar noturno, levemente úmido, um frescor gostoso, para compensar o calor durante o dia. Perdi a noção de tempo nas últimas semanas, mas acho que estamos no outono. Pelo caminho, conheço outros tomba-latas que não me despertam interesse. Quero ficar só, isolar-me de meus iguais por algum tempo, até meu ímpeto canino voltar a ser como antes. No momento, podem me classificar como misantropo. Eta palavra bonita. Quer dize insociável, solitário. Um dia desses sou convidado para entrar na Academia Canina de Letras, onde toda tarde tem chá, digo, tem osso gostoso e limpo, com fiapos de carne, para seus membros.

Assim matutando, conversando com a lua que vai se embora aos poucos para ceder lugar ao sol, chego a uma chácara onde paro para descansar e acabo dormindo. Horas depois, sou acordado violentamente por um cachorro enorme, quase o dobro de meu tamanho, que pisa suas patas pesadas sobre minha barriga. Só tenho tempo de dar um coice de reação e fujo em disparada. O monstrengo vem atrás de mim e morde minha cauda e leva a pontinha dela embora. Uivo de dor, mas aumento o passo. Como meu pelo está curto e em crescimento, por causa da sarna, fica mais fácil para o imbecil morder e arrancar a pontinha de meu rabo.

Ao ultrapassar o portão da chácara, um homem grita para o cachorrão “pare aí, Leão”. Ele obedece e deixa de me perseguir. Ainda bem, mais um pouco e o filho da mãe me alcança e aí eu perderia mais que a ponta da cauda. Minutos depois, o homem volta e me chama carinhosamente “venha cá, meu chapa”. Olha o ferimento no rabo e me leva para dentro da casa da chácara. Durante o trajeto avisto o cachorrão, agora preso na corrente, e lhe mostro os dentes. Em casa, o homem passa remédio no meu ferimento e me dá comida. Depois, com o Leão preso, aliás, faz jus ao nome que tem, o homem me chama e saímos para passear. Fico o dia todo no local. Somente à noite o meu novo dono me prende, em local seguro, e solta o Leão para vigiar a propriedade.

Passo a ser chamado de Duque. Legal. É o título de nobreza mais alto que existe. Acima dele, só príncipe e rei. Não deixa de ser um paradoxo, um vira-lata sem estirpe, com título tão proeminente. Alguma coisa é sempre melhor que coisa alguma.

No entanto, essa vida de solto durante o dia e preso à noite me cansa. Tenho medo de ser pego pelo brutamontes do Leão a qualquer hora. Ele já escapou duas vezes em quinze dias e fui salvo por milagre. O fato de ele ficar acorrentado, em vez de amansá-lo, o torna ainda mais agressivo e vingativo. Leão me odeia demais. Afinal, ocupei parte de seu território na chácara e também no coração do dono. Nenhum cachorro suporta tal intromissão. Resolvo então voltar a ser o gira-mundo de sempre e boto o pé, digo a pata, na estrada.

Antes de ir embora, porém, resolvo encher a pança e aprontar uma boa pra cima do meu algoz. Entro no local onde o dono da chácara cria preás e abocanho dois deles. O mais gordinho, traço na hora. Carne boa, porém meio adocicada. Já o outro coitado, como apenas e metade, levo a outra parte e a deixo perto da casa do Leão. Quando o dono for levar a comida para o monstrengo, vai pensar que ele matou seus preás. Não sei se vai dar certo, mas vou embora feliz.

Pego a estradinha de terra e sigo até alcançar o asfalto e a civilização. De longe, enxergo uma fêmea. Como eu sei o sexo de longe? Ora, fácil. A cadela faz xixi sem levantar a pata e não precisa de poste ou parede. Corro todo feliz e começo a andar em volta dela, balançando meu rabicho. Ela gosta da minha cauda sem a pontinha tradicional. Eu sabia que aquela sequela ainda seria meu charme. Subo em cima dela e sacio minha vontade de macho. Há tempos não experimento esse rito prazeroso entre animais, talvez entre as plantas e, ouso mais, quiçá até entre os minerais. Será que uma pedra transa com outra?

Recomeço a andar numa subida e só então percebo que me canso hoje bem mais que tempos atrás. Será o adentrar da idade? Antes corria mais que notícia ruim. Dizem que o cachorro vive no máximo entre 12 e 14 anos. Qual será minha idade? Não sei. Minha mãe, coitada, nem teve tempo de ir ao cartório registrar a ninhada. Talvez eu tenha por volta de 10 anos, fato que explica meu cansaço, hoje, além da vida displicente que levo, sempre com fome, perebento, pulguento. Ah, não tenho que lamentar. Levo a vida que sempre quis. Colho o que plantei. Como plantei vento a vida toda, hoje vivo de brisa. Preciso melhorar meu astral, esquecer estas bobagens, caso contrário fico lelé da cuca. Vira-lata já é malvisto normalmente, imagine um vira-lata xarope da cabeça?

Deito-me para descansar embaixo de uma árvore. Neste momento, aparece uma senhora que brinca comigo, me dá um pedaço de salsicha e me convida para entrar na casa dela. A mulher abre o portão e eu entro abanando meu rabicho e a gente se encaminha para os fundos do enorme quintal em que ela mora. Percebo, então, o monte de cachorro que ela cuida dentro de um cercado. São mais de oito. Ela me coloca lá como se estivesse fazendo um favor para mim. Tento fugir mas ela não deixa. Nem nome ela me dá. Mas com aquele monte de cachorro não é possível mesmo nomear ninguém.

Descubro depois que todos os cães são machos. A danada da velha só recolhe machos da rua. Pô, tenha dó. Nenhuma fêmea para a gente se divertir? Além disso, a mulher só dá comida uma vez por dia e quase não troca nossa água. Oh, São Francisco de Assis, isso aqui é um campo de concentração. Começo então a fazer o que mais gosto, conspirar contra a tirania. Convenço meus companheiros sobre a necessidade de a gente se revoltar contra a senhora, que de salvadora passa a ser algoz. Iniciamos uma balbúrdia, latidos, uivos, avanços sobre o cercado até que a mulher aparece, assustada. Sem saber o que acontece, ela entra no cercado e um grupo de nós salta sobre ela, que cai no chão. Com o portão aberto, a gente foge, pulando o muro da casa, que por sorte não é muito alto. Novamente, a rua: Egalitê, Fraternitê e Libertê.

Perambulo pelo bairro com parte da turma e nos divertimos muito rasgando sacos de lixo. Com o passar dos dias, acabo ficando só novamente. Cada um da turma vai parando pelo caminho, se encostando em algum boteco para ser adotado por alguém. Não gosto de fazer isso, a não ser em urgência, quando a fome bate pesado em meu estômago.

Percebo, novamente, que estou mais fraco que antes. É só andar um pouquinho, principalmente em subida, que a língua vira uma gravata. Correr de algum homem ou de outro cachorro também está ficando cada vez mais doloroso. As patas doem e as pernas não obedecem mais o comando do cérebro.

Vivo sozinho pelas ruas, a comer restos de comida aqui e ali. Eis que, de repente, vários vira-latas começam a correr de um carro da prefeitura, feito loucos. Tento, mas não consigo fugir a tempo e sou pego pelos homens, caçado por meio do laço de uma cordinha que prende minhas pernas e me leva ao chão, sem defesa.

Vou parar no canil municipal. É onde estou agora, à espera de uma surpresa. Vem gente adotar cachorro. Entretanto, como já estou meio velho e desengonçado, não sou escolhido por ninguém. Meus companheiros de cela dizem que nosso destino é virar sabão. Será que o meu fim é este? Que saudades dos bons tempos, quando eu vivia livre pelas ruas. Se eu virar sabão, tenha certeza, meu amigo, vou morder a mão da lavadeira e fazer xixi no tanque.

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