quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Feliz ano novo


Otávio Nunes

Cético que sou, sempre achei o ano novo apenas a próxima etapa do mesmo tempo. Uma convenção chamada calendário. Uma “troca de tabuleta”, como diria Machado de Assis, referindo-se à República que sucedeu o Império. Um ano vai, outro começa, num eterno continuar, sem fim. Tão previsível como dízima periódica.
No entanto, mesmo sendo esperáveis, a vida ou o tempo, fique a seu critério, ainda são capazes de nos causar muita surpresa. É esta esperança de nos espantar com o novo ano que nos atiça, nos cativa e nos submete como crianças aos caprichos de viver um dia após o outro, a driblar o tédio e a vislumbrar alvíssaras.
Não perca a fé, meu amigo. Mesmo que você não acredite em melhorias e prefira a angústia à esperança, o jiló ao mel, o passado ao porvir, tenha certeza: o mundo, tampouco a humanidade, não o odeia. É você mesmo que optou pelo isolamento. Quebre a casca, deixe de ser ostra (sem intenção de viadagem). Destramele a janela que a lufada do vento da esperança entrará pelo desvão de sua vida, levantará seus cabelos e oxigenará seu coração tão sem vida. Feliz ano novo para todos nós.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O copo de cada dia

Otávio Nunes

Darmiel apertou o botão e seu torno parou de funcionar. Retirou a ferramenta usada e gasta e foi ao almoxarifado pegar outra. Enquanto trocava o dispositivo, para usinar uma nova peça, olhou a máquina ao lado, desligada há dois dias, esperando um novo profissional, e lembrou de seu antigo operador, o amigo Valtercides, o Cidão. Que vida besta meu Deus!, pensou Darmiel.

Seu colega havia sido morto num assalto, quando chegava à noite em casa. Coitado. Logo agora que ele estava tão contente com o torno novo, importado da Alemanha, dotado de comando numérico computadorizado e software de última geração. Cidão havia feito um mês de curso para trabalhar no equipamento. Até algumas palavras de alemão o danado falava.

Eles se conheciam desde os tempos de Senai. E lá se iam os anos. Fizeram estágio juntos. Foram efetivados no mesmo dia. Grande amigo, o Cidão, lastimou Darmiel. Quem iria acompanhá-lo agora na cachaça das cinco, no boteco do Paraíba? Toda tarde, logo que saíam do trabalho, tomavam um copo da boa. E agora? Neste instante, Darmiel teve uma idéia. Tomaria dois copos de pinga. Um para ele, outro em homenagem ao amigo, alijado do mundo dos vivos tão precocemente.

No início, o botequeiro achou estranho. Mas com o tempo foi se acostumando. Assim que Darmiel entrava no bar, lá vinha o Paraíba com dois copos de cachaça. Ele bebia o seu e lambia o beiço. Depois falava o nome de Cidão e despejava, feliz, o segundo trago goela abaixo.

Uma bela tarde, assim que o freguês entrou no boteco, Paraíba depositou os dois copos cheios no balcão, como sempre. Darmiel disse que a partir daquele dia tomaria apenas um copo de pinga. Por que? Indagou o dono do boteco. Ao que Darmiel respondeu: “Parei de beber”.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Esperando o trem


Otávio Nunes

“E o meu coração, embora
finja fazer mil viagens,
fica batendo parado naquela estação.”
(Adriana Calcanhoto)


Rapaz: O trem está demorando, você não acha?
Garota: É verdade
- Há quanto tempo você está aqui?
- Acho que...uns quinze minutos
- Ta demorando mesmo, né?
- Mesmo
- Huuum. Será que vai chover?
- Parece que sim
- Que calor está fazendo hoje!!
- É verdade
- Você... está indo ao trabalho?
- Não. Estou em férias
- Que bom!! Vai viajar?
- Ainda não sei
- Acho que já vi você antes nesta estação
- Acho que não. É a primeira vez que pego trem aqui
- Onde você mora?
- No outro lado da cidade
- Então, me desculpe, mas...o que faz aqui?
- Dormi na casa da minha tia
- Será que a gente poderia se...
- Olha!. O trem está chegando
Tiuquitiuqui tiuquitiuqui tiuuuquitiuuuqui tiuuuuquitiuuuuqui tiuuuuuquitiuuuuuuuuuqui.
Biiiiiiiiiiiim
(abre as portas)

Os dois entraram. Porém, por causa do atraso, o vagão estava superlotado e eles não conseguiram ficar próximos um do outro, para continuar a conversa. Ela desceu na próxima estação, onde pegaria outro trem, e ele teve de continuar a viagem. No primeiro degrau da escada rolante, ela se virou e seus olhares se coincidiram mais uma vez. Ele seguiu em frente torcendo para que ela dormisse mais um dia na casa da tia, que, embora nascida na Bahia, morava na Freguesia. Ah, meu Deus, que agonia!!

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Encontro de Natal


Otávio Nunes

Dois amigos se cruzam numa loja de roupas dentro de um shopping center, às vésperas do Natal. Havia anos não se encontravam. Abraçam-se efusivamente, várias tapinhas nas costas, beijos na face da esposa do outro e várias exclamações de espanto que só tempo longo traz à tona: “Nossa senhora, como seu filho cresceu. Era um merdinha deste tamanho”, “a sua menina também está grande, lembro-me que a carreguei no colo e ela até fez xixi na minha gravata”.

As duas famílias ficam juntas dentro da loja, a comprar roupas. Um dos amigos compra uma gravata nova para o colega: “Esta é para compensar aquela do xixi”. O outro também presenteia o amigo, com uma camiseta. “Lembra-se que certa feita você me emprestou uma e nunca mais devolvi?” Depois, vão almoçar.

- Você ainda continua com aquela empresa de consultoria financeira?
- Sim. Tem cliente que me paga bem para aconselhá-lo a perder dinheiro. E você? Ainda tem seu escritório de advocacia?
- Sim. Meus clientes também me pagam bons honorários para eu que perca seus processos.
- Somos dois picaretas, então?
- Claro que somos.

Ambos riem das brincadeiras. As duas esposas, como não se lembram muito bem uma da outra, apenas trocam olhares e pequenos comentários à mesa. O menino e a menina brincam com seus aparelhos celulares.

Após o almoço, os amigos trocam números de telefones, cartões de visita e se comprometem a se ver novamente, sair juntos para ir um restaurante ou coisa assim. Desejam feliz natal, próspero ano novo e felicidades mil. Abraçam-se, beijam-se e se despedem com a ilusão de se ver novamente. Mas no fundo sabem que suas vidas estão por demais resolvidas e independentes e que dificilmente se encontrarão novamente. No próximo Natal, quem sabe.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Papai noel de saco cheio


Otávio Nunes

Prezado Papai Noel Maior, chefe de todos os papais noéis do mundo, morador perpétuo da distante e gélida Lapônia, desculpe-me por ocupar parte de seu tempo, cada vez mais exíguo, principalmente às portas do Natal. Quem escreve à sua magnânima pessoa é o seu subalterno, o Papai Noel do Brasil. A intenção dessa indignada e maldigitada missiva é pedir, com todo respeito, minha aposentadoria. Não por tempo de trabalho, que talvez nem tenha alcançado, mas porque já me desiludi de minha missão nesse país. E papai noel descrente não exerce direito sua função. É mais honesto parar de vez.

Aceito, se possível for, uma transferência, mas para um local melhor. Poderia ser, por exemplo, a um país próximo de onde o senhor mora, um desses da Escandinávia, onde terei mais tranqüilidade, desfrutarei dos meus impostos e serei tratado como gente, como cidadão. Será possível, até, estacionar meu trenó na rua com a certeza de encontrá-lo novamente quando voltar.

Darei minhas razões para me afastar de tão nobre e altruísta função, para a qual o senhor me escolheu e sempre cumpri com esmero, apesar das contrariedades impostas por essa nação ingrata a seus filhos. Ou será o contrário? Não sei. Espero que meus motivos sejam acatados por sua extrema benevolência e tolerância.

De alguns anos para cá, tratam-me como imbecil. Cheguei ao ponto de achar que realmente sou um. Tudo que acontece nesse país derruba minha auto-estima, Natal após Natal. Imagine o Senhor um pé de tomate em que alguém substitui o fruto mais viçoso por uma bola de bilhar. Pois é, sinto-me assim: derrubado, rente ao chão, como esse tomateiro.

Quando ando pelas ruas das cidades brasileiras presencio cenas dantescas, como hordas de crianças que me pedem o que jamais poderei lhes dar. Tem ainda os gerentes de shopping center que me convidam para distribuir balinhas em frentes às lojas, pessoas que pedem para eu sorrir (oh, oh,oh!) só para tirar fotos ou rir de mim e, o pior de tudo, adultos que olham para mim e dizem ao filho: “Papai Noel não existe, moleque. Sou eu quem compra seus presentes, não este panaca aí vestido de vermelho”.

Voar com meu trenó também ficou complicado por causa do caótico tráfego aéreo brasileiro, sem contar os urubus, prédios enormes, erguidos em lugares inconvenientes, poluição do ar. Tudo isso atrapalha a mim e às minhas renas, que já estão neuróticas, sem sentido de localização e asmáticas. Como nesse país não há chaminés nas casas, e as que têm não precisam de meus presentes, sou obrigado a encontrar outras formas de entrar nas residências. Já quebrei telha, furei caixa-dágua, pisei em cocô de pombo e até fui confundido com ladrão.

Também já ocorreu o contrário. Fui assaltado diversas vezes. Foi difícil para eu provar ao ladrão que não tenho conta em banco. Ele olhou para meus presentes e pensou que eu era um próspero comerciante de loja de R$ 1,99. Meu Papai Noel Maior, é muita humilhação. Mas o larápio tinha razão. Meus brinquedos são todos made in China, mesmo. Porém, a maior degradação por que passo nas ruas é a pergunta malévola dos brasileiros: “Seu saco é de brinquedo?”

Até mesmo a capital do país, que sempre achei uma ilha de civilização no mar da barbárie, já não é mais a mesma. Se passo pelas quadras planas de Brasília, principalmente perto do Congresso Nacional, sou obrigado a proteger minha carteira. Certa feita fui até confundido com determinado senador e tive de correr para não ser linchado. Os manifestantes não acreditaram na minha versão. Acharam que minha roupa era disfarce para andar na multidão sem ser reconhecido.

No Rio de Janeiro, onde sempre gostei de circundar o Cristo Redentor com meu trenó, é quase impossível perambular em paz. Há alguns anos minha preocupação era ver crianças perdidas nas calçadas de Copacabana. Hoje, quem não tem destino são as balas.

Bem meu indulgente Papai Noel Maior, Rei da Lapônia e protetor dos desafortunados desse mundo, tudo que relatei ao senhor é a mais pura verdade, extraída das profundezas abissais de minha alma. Perdão pela frase chula: ESTOU DE SACO CHEIO!!

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Crônica do nascimento

Uma colega de redação trouxe ao mundo mais um brasileiro. Estas maldigitadas são em homenagem a este pimpolho, que certamente herdará a singeleza materna.

Convivo diariamente e noturnamente com meus lados otimista e pessimista. Ora um se sobrepõe ao outro. Às vezes, até empata. Mas aviso logo: não tenho problemas de dupla personalidade, nem sou psicopata de filme americano. Apenas coordeno, de forma hercúlea e disciplinada, o embate entre a esperança e o ceticismo. Vamos ao meu primeiro lado.

O mundo torna-se a cada dia mais insano. O operário é substituído pelo robô e o neo-liberalismo propõe flexibilização das leis e menos influência do Estado na vida do cidadão, belo discurso para jogar a carteira profissional na obsolescência. Podemos ser encontrado em qualquer lugar a qualquer momento, pelo celular ou e-mail. Antes só a polícia conseguia tal façanha.

A Internet toma o lugar dos livros, minha assinatura deixa de ser manuscrita e vira senha eletrônica, aposentando definitivamente meu talão de cheques. A imprensa abandona a reportagem e publica notícias de agências ou releases de assessoria e o jornal do dia já é capaz de sair no próprio dia.

Os partidos se parecem mais a cada eleição. O revolucionário perdeu a esperança. O de esquerda tornou-se social-democrata e este último virou liberal à moda inglesa. Só o conservador continua fiel a seus princípios.

Minha querida MPB, que acompanho desde quando Chico e Vandré ganharam o festival da Record, some das rádios e das lojas de discos. Estas, por sua vez, também desaparecem. Cinemas? Só nos shoppings, esta praga do consumismo americano, que acaba com o comércio de rua e leva bairros inteiros à decadência urbana. Até o gerúndio (praga II) “está tomando” o lugar do presente do indicativo.

Agora chega. Abandono o apocalipse e adoto as alvíssaras. O mundo sempre esteve em constante mudança e não podemos nos sentar no banco da estação nostalgia à espera de um trem que passou. Acompanhemos, portanto, as novidades e nos adaptemos às mudanças sem perder a essência.

O mundo está aquém da perfeição e o ser humano, anos luz da tolerância. Mas é aqui, neste planeta, que viveram nossos ancestrais e será o lar dos que estão por chegar.

Garoto, rebento, guri, pedacinho de gente, bem-vindo seja. Você tornará este mundo melhor.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

No fundo do poço

Gerolina abriu as portas do pequeno armário, procurou embaixo da cama, dentro do guarda-roupa. Nas gavetas da velha cômoda, então, só baratas encontrou. Vasculhou até mesmo o interior da geladeira imaginária, que sonhava ter um dia dentro de seu barraco de madeira na Favela Manhattan.

De comer, só tinha mesmo o resto de um pacote de macarrão ganho na cesta básica do governo. Dinheiro? Estava todo contadinho para tomar os quatro ônibus no dia seguinte para trabalhar como diarista num bairro distante. Pôs as mãos no rosto e sentiu o cheiro delas. Não sabia se o odor era de desinfetante de banheiro, detergente, alho picado, mofo da madeira ou o suor de seu corpo dentro da mesma roupa há dois dias.

Sentou-se na poltrona, pedindo licença a uma mola solta. Ligou o rádio na única estação que ainda chiava e sentiu vontade de ter uma televisão e uma antena bem comprida no cume do barraco, segura por um cabo de vassoura. Até marido, novamente, Gerolina desejou naquele momento. Depois sorriu. Pelo menos o único bem de sua vida, além de si mesma, já estava para chegar.

Hinário entrou no barraco com a cabeça baixa. Era o filho dela com um poceiro que morreu cinco metros abaixo coberto pela terra de um buraco que não queria ser cavado. O rapaz beijou a mãe. Ela esperou que ele fosse ao banheiro e assim que voltou pediu para que saísse e roubasse algo que pudesse ser vendido rapidamente, para comprar o que não tinham. “Serve qualquer coisa, até um sapato usado.”

O filho, cansado de freqüentar as unidades prisionais do juizado de menores, disse que não poderia mais praticar nenhum furto. “Doutor juiz me disse que, se for pego novamente, não voltarei mais para casa, pois já sou de maior”, balbuciou Hinário. “Por isso mesmo. Só assim você terá um teto que não pinga, beberá água limpa, comerá todo dia e terá meu carinho uma vez por mês. Agora, vá”