quinta-feira, 30 de outubro de 2008

ETeimosa

Otávio Nunes

Quase todo dia era a mesma coisa. Era só Vandemílton chegar um pouco atrasado que lá vinha a bronca de Joselma, com sua voz metálica inconfundível.
- Saiu com sua amante de novo, é?
- O ônibus demorou a passar, justificou o marido.
A mulher, como era de esperar, não acreditou e desfiou um rosário de impropérios em cima do companheiro. Joselma dizia que ele sempre tinha uma boa desculpa para justificar sua sem-vergonhice.

Vandemílton era metalúrgico, trabalhava numa fábrica de chaves, fechaduras, cadeados, taramelas, trincos, dobradiças e outros dispositivos para prender ou fixar alguma coisa. Apertava parafuso o dia todo. Sofria de uma tendinite eterna na munheca direita. Mas tinha medo de entrar no seguro, ficar bom e não mais encontrar o trabalho na volta. Às vezes o punho doía até mesmo ao levar o garfo à boca.

Alguns dias por semana fazia horas extras e chegava tarde da noite em casa. Mesmo assim encontrava Joselma inflexível.

- Hora extra, nada. É alguma vagabunda que você encontrou no ponto de ônibus. Esta cidade tá cheia de mulher que quer coisa com homem casado e você ainda...
Na verdade, Vandemilton era tão tímido que, se uma mulher lhe desse bola, ele acharia que ela era zarolha e estava olhando para alguém do seu lado. Depois de 13 anos de casado, já estava acostumado aos acessos de Joselma, sua única namorada na vida e aceitava as cenas de ciúme com galhardia. Pouco discutia.

Nas noite em que Joselma dormia nervosa, Vandemílton não a procurava na cama, fato que a irritava ainda mais. O ciúme dela aumentou depois que descobriu um telefone de mulher no bolso do uniforme de Vandemílton, na hora de lavar a peça no tanque. Foi uma noite de desaforos e palavrões impublicáveis. Nem Joselma imaginava conhecer vocabulário tão chulo.

Nem adiantou Vandemílton provar que aquele telefone era da concessionária de água e a mulher, atendente do serviço ao cliente. Ele tinha ligado para mudar a data de vencimento da conta e deixara o telefone com o nome da funcionária no bolso do macacão.

Quanto aos outros atrasos, ele não mentia. Realmente chegava mais tarde por causa do trânsito, do ônibus e por outras adversidades da vida de quem mora na periferia de grandes cidades.

Naquela noite, o cobrador e um passageiro brigaram no ônibus por causa de dez centavos. O homem esmurrou o cobrador, provocando rompimento no supercílio. O sangue desceu, fez meleca nas notas da gaveta e o motorista teve de parar na delegacia para lavrar a ocorrência. Vandemílton chegou três horas mais tarde em casa.
- Qual a desculpa de hoje, seu à toa.
- Fui seqüestrado por um disco voador. Horas depois os ETs descobriram que eu era o homem errado e me deixaram em frente de casa, pelo menos economizei um vale-transporte.
- Essa é nova. Foi a vagabunda quem te ensinou? Porque você não conseguiria pensar nessa história sozinho.
- Mas é verdade. Posso provar, assegurou Vandemílton e abriu a porta.

Um ser estranho, com quatro braços, três pernas, um só olho em cada uma das duas cabeças, gosmento, exalando um gás malcheiroso, alto, magro e de cor indefinível sentou-se no sofá, para espanto de Joselma.

- É o meu seqüestrador, apontou o marido.

Refeita do susto, Joselma não se deu por vencida. Pôs o pano de prato no nariz e perguntou com voz nasalada.

- É macho ou fêmea?

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Um trem para as estrelas

Otávio Nunes

Acabo de comprar um jornal e sento-me no banco da praça para lê-lo. A meu lado, um senhor de mais ou menos 60 anos, de braços cruzados, olha constantemente para o lado esquerdo, como se espera por alguém. Chego a pensar que ele está interessado em ler meu jornal e lhe ofereço um dos cadernos.
- Muito obrigado. O jornal não tem nada a me dizer.
- Mas o senhor pode se informar sobre futebol, por exemplo, quer o caderno esportivo? – Insisto.
- Obrigado. Não torço para nenhum time e acho bobagem um bando de idiotas correndo atrás de uma bola.
Caro e barato leitor, você talvez imagine, e com razão, que o velhinho seja um tremendo chato, de mal com a vida. No entanto, ele carrega um semblante feliz e simpático.

Não interpreto mal suas negativas em ler pedaços do meu jornal. Pergunto o que faz na praça, pois parece ter encontro marcado com outra pessoa.
- Estou esperando o trem.
- Como? Questiono novamente. Ao que me responde a mesma coisa, no mesmo tom de voz.
- Mas, meu senhor, estamos numa praça. Não passa trem aqui.
- Passa, sim. Fique aqui mais um tempo e verá o trem chegar.

Não sei por que. Mas permaneço no banco mais alguns minutos a ler meu jornal e curioso em ver o trem. Não tenho outra coisa a fazer, por hora. Passam-se não sei quantos minutos e nada. Resolvo então ir embora e me despeço do homem.
- Boa viagem para o senhor.

Perambulo pelas ruas, olhando vitrines, e meia hora depois volto à praça. Porém, o velhinho não está mais lá. Dirijo-me até o dono da banca, onde comprei o jornal, o mesmo que viu eu me sentar no banco, e pergunto sobre o velhinho.
- Ele pegou o trem – diz o dono da banca
- Meu amigo, com todo respeito, parece que de repente o mundo todo enlouqueceu. Aqui não passa trem algum.
- Passa sim. Sente-se no banco e espere.
Sento-me e minutos depois ouço “Tiuc tiuc tiuc tiuc ...” É o trem. Pára à minha frente e abre a porta. Entro. Só há um vagão e um passageiro: eu. Não sei aonde vai, nem como descer. Mas sinto-me bem sentado aqui, na janela, vendo as pessoas lá fora que nem sequer notam o trem passar perto delas. Lembro-me, agora, de uma música do Cazuza chamada Um trem para as estrelas. É para lá que vou, tenho certeza. “Tiuc tiuc...”

terça-feira, 21 de outubro de 2008

No elevador

Otávio Nunes

Pela primeira vez, depois de alguns meses, os dois ficaram sozinhos no elevador. Não sabiam o que falar ao outro. “Ela mudou de perfume”, pensou ele. “Ele anda relapso, com a barba por fazer e a camisa malpassada”, pensou ela.

Envergonhados e tímidos, não estavam preparados para um momento como aquele e lamentaram até a falta de ascensorista no elevador da empresa e torciam para que outro funcionário entrasse. Ainda faltavam mais de dez andares para chegar onde trabalhavam, em departamentos diferentes. “Será que ela ainda me odeia?”, “Eu acho que ele nunca vai me perdoar.”

Os momentos ternos do passado voltaram à mente de cada um. E como a vida é madrasta e cômica, lembraram-se de que tudo havia começado numa conversa no mesmo elevador. E lá se iam dois meses do último encontro, do último beijo, da última... Embora fosse difícil assimilar e assumir, eles ainda pensavam num provável retorno. Mas dar o braço a torcer, jogar o orgulho pela janela, reconhecer erros... “Não sei o que dizer”, pensou ela. Ele, também.

Sentiam vontade de entabular uma conversa. Ensaiavam trejeitos para falar algo ao outro e a voz não saía. Ele pigarreou e ajeitou a gravata torta. Ela passou a mão sobre o cabelo, temendo estar despenteada. Ele coçou a testa e olhou de soslaio para o teto do elevador. Os olhos dela voltaram-se para o chão, como se procurasse algo que caiu.

De repente, seus olhares se encontraram novamente, como da primeira vez, e os lábios iam se mover para pronunciar algo. Não deu tempo. O elevador parou e abriu a porta e ambos se dirigiram a seus departamentos.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Festa no pomar

Otávio Nunes

A melancia e o melão resolvem finalmente se casar. Quando chega o dia, todas as frutas se encontram na festa. A banana, esbelta em suas curvas, traja vestido longo amarelo com bolinhas pretas e um colar brilhante que realça ainda mais seu pescoço. Um charme. A uva, coitada, tem de ficar nos cantinhos do salão de festa para que ninguém pise em cima dela. Sua amiga de tamanho, a jabuticaba, de pretinho básico, não sai de seu lado. Estão tão próximas que as demais frutas confundem as duas, o que as deixa ainda mais iradas. “Baixinho é invocado, mesmo”, brinca a jaca.
O abacaxi, gordo e bonachão, mostra sua coroa e se proclama o rei da festa, porém ninguém aceita dançar com ele, por causa de sua roupa espinhosa. A laranja traz à festa sua família completa. Está acompanhada dos primos limão, lima, cidra e mexerica. O abacate chega todo contente mas arruma briga com um grupo de convidados que o apelida de Hulk.
Muita gente comenta o jeitão do morango: “Num sei não, é tanta delicadeza que desconfio”. O mais desejado é o pêssego: As pretendentes dizem: “ah, este cara é todo aveludado e cheiroso”. Mas a maior paquera rola mesmo entre a manga e o mamão. Muito convidado comenta que será o próximo casamento. “Desde que este mamão seja macho”, brinca o kiwi. “Deixe de maldade, seu peludo sem graça”, retrucava a goiaba.
A festa segue animada. Mas de repente uma balbúrdia se instala no salão e o corre-corre começa. “Que acontece, prima”, pergunta a maçã para a pêra. “Corra, corra. É o liquidificador.”

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Quadrado amoroso com cinco

Otávio Nunes

Austerlídio nutre paixão platônica por Mefilida, sua vizinha. Todo dia à tarde, no lusco-fusco, ele sobe à laje para observá-la chegar em casa. Sabe até o horário do ônibus que ela toma. Mas Mefilida raramente o olha, faz-se de despercebida. Austerlídio e Mefilida são casados, porém não um com o outro e sim com Bilda e Juzulino, respectivamente.
Meses depois, Austerlídio leva um choque, de arrepiar seus parcos cabelos. Um imprevisto, daquele que não se espera, o deixa atônito e solteiro novamente. Sua esposa Bilda e o vizinho Juzulino, que entraram na história como coadjuvantes, fogem num caminhão de mudança, e juntos, dentro do guarda-roupa. Semanas depois, Mefilida também põe o pé no mundo e vai viver com outro sujeito que só entrou na trama para tal finalidade.
Moral da história: se você deseja algo, parta logo para cima. Não fique ensebando, enchendo o saco. Caso contrário, vai chupar o dedo.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Nos trilhos

Otávio Nunes

“E o meu coração, embora
finja fazer mil viagens,
fica batendo parado naquela estação.”
(Adriana Calcanhoto)


Rapaz: O trem está demorando, você não acha?
Garota: É verdade
- Há quanto tempo você está aqui?
- Acho que...uns quinze minutos
- Ta demorando mesmo, né?
- Mesmo
- Huuum. Será que vai chover?
- Parece que sim
- Que calor está fazendo hoje!!
- É verdade
- Você... está indo ao trabalho?
- Não. Estou em férias
- Que bom!! Vai viajar?
- Ainda não sei
- Acho que já vi você antes nesta estação
- Acho que não. É a primeira vez que pego trem aqui
- Onde você mora?
- No outro lado da cidade
- Então, me desculpe, mas...o que faz aqui?
- Dormi na casa da minha tia
- Será que a gente poderia se...
- Olha!. O trem está chegando
Tiuquitiuqui tiuquitiuqui tiuuuquitiuuuqui tiuuuuquitiuuuuqui tiuuuuuquitiuuuuuuuuuqui.
Biiiiiiiiiiiim (abriu as portas)

Os dois entraram. Porém, por causa do atraso, o vagão estava superlotado e eles não conseguiram ficar próximos um do outro, para continuar a conversa. Ela desceu na próxima estação, onde pegaria outro trem, e ele teve de continuar a viagem. No primeiro degrau da escada rolante, ela se virou e seus olhares se coincidiram mais uma vez. Ele seguiu em frente torcendo para que ela dormisse mais um dia na casa da tia, que, embora nascida na Bahia, morava na Freguesia. Ah, meu Deus, que agonia!!