Otávio Nunes
Doutor Merchol Junqueira deixou o fórum bastante tarde, às vinte e uma horas e chegou em casa trinta minutos depois. Após estacionar o carro na garagem, pegou sua pasta, seus papéis e entrou. A sala vazia, naquela noite, o deixou transtornado. Morava sozinho havia mais de um ano, depois que a esposa tinha fugido com o dentista. Guardou suas coisas e abriu a garrafa de uísque. Mas nenhuma gota caiu no copo. Nervoso, saiu de casa e foi ao bar.
Só saiu do bar quatro doses depois, trôpego como um robô em projeto, o que o fez tropeçar na sarjeta e cair com o rosto virado para o bueiro.
De repente, um enorme rato sai do buraco e o fita bem nos olhos. “Saia daqui bicho ignóbil”, disse doutor Merchol, com a voz pastosa. “Sou tudo isto porque vivo do lixo que vocês produzem”, respondeu o roedor.
“Era só o que me faltava, um rato ecologista e sociólogo”, murmurou o doutor. “Também faço trovas e canto para minhas fêmeas”, disse novamente o roedor. Doutor Merchol achou aquilo um achincalhe e mostrou sua indignação. “Rato é rato. E rato é sempre sinônimo de sujeira e infâmia. Se estivesse em condições, eu o esmagaria com um chute no meio do estômago.” Depois de dizer tais palavras, fechou os olhos e dormiu ali mesmo.
No dia seguinte, acordou tarde, com os olhos ardendo e a cabeça latejando de dor. “Acorde doutor, beba este remédio, tome um banho e vá para a cozinha, pois seu café da manhã está pronto. O senhor tem reunião no fórum às onze horas.” Era o rato que o chamava, vestido de mordomo.
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
Cacarecos do meu Brasil
Otávio Nunes
Em 1958, chegou a São Paulo, vindo do Rio de Janeiro, o rinoceronte Cacareco, uma das atrações da então inauguração do Zoológico da Capital paulista. O bicho fez tanto sucesso na cidade que nas eleições municipais do ano seguinte recebeu cerca de 100 mil votos para vereador. Na época, tal enxurrada elegeria quase 10 pessoas. O sufrágio (eta palavra feia, pior que ela só escrutínio!) era na mão. Atualmente, com a urna eletrônica, seria impossível a façanha do chifrudo.
Mas a expressão voto cacareco chegou aos nossos dias. É usada, hoje, para definir a preferência do eleitorado por candidato, digamos...esquisito, folclórico, engraçado e geralmente sem currículo político. Mas, sozinho, ele recebe tanto voto que supera o coeficiente eleitoral: votos válidos divididos por vagas no parlamento (válido para vereadores e deputados estaduais/federais). Este voto é chamado de proporcional, diferente do outro (para presidente, governador, prefeito e senador), denominado majoritário, em que (machadianamente) ao vencedor, as batatas. Aliás, o nome correto do coeficiente é quociente eleitoral, por ser resultado de divisão. Outra correção: cacareco era fêmea.
Por que tudo isso? Primeiro, para lembrar que a eleição municipal se avizinha. Cuidado com cacarecos de plantão. Segundo, para dizer que "o sistema eleitoral brasileiro é dos mais democráticos do mundo". Tal afirmação não é minha, pois também tenho dúvidas. Ouvi de um professor de Sociologia nos meus tempos de faculdade. Na época, espantei-me e o questionei no corredor. Ele me disse que não tinha tempo para explicar, que o procurasse depois. Resolvi então, me virar sozinho e fui pesquisar na biblioteca. Não havia Internet. Isso foi no final dos anos 80 e a Constituição era um recém-nascido. E não é que o professor tinha lá suas razões?
Vejamos. Conforme acima, no Brasil a gente pratica voto majoritário (apenas uma vaga em disputa, no caso do senador podem ser duas) para cargo executivo e proporcional para parlamentar. Ponto para nós. Há países supercivilizados (EUA e Inglaterra) que escolhem parlamentar por majoritário (é o chamado distrital simples ou puro), sistema que costuma conduzir ao bipartidarismo, formar oligarquias e prejudicar minorias. O que dizer do presidente americano, então, eleito por colégio eleitoral?
Até o majoritário no Brasil é mais justo. Em localidade com mais de 200 mil habitantes temos segundo turno, exceto para senadores. Há países que adotam maioria simples, fazendo com que um sujeito do executivo seja eleito por 25% a 30% dos votos. O segundo turno garante maioria absoluta e fim de papo. Ponto para nós.
No proporcional, o brasileiro vota em lista aberta. Ou seja: diretamente no candidato. É como se houvesse uma lista em nossa frente e a gente pinçasse nosso candidato de dentro dela. "É você que eu quero, meu fofo." Somente Brasil e Finlândia adotam lista aberta. Nos outros países, a relação de candidatos é fechada e o eleitor escolhe somente partido ou coligação. Os eleitos são os primeiros da lista. Se o partido ou coligação tiver direito a 10 vereadores ou deputados, serão automaticamente os 10 primeiros da relação, feita anteriormente pelos partidos. O eleitor não pode escolher candidatos, apenas o partido. No Brasil, não. Nós escolhemos o sujeito lá dentro, na lista aberta. Mais um ponto para nós.
Nosso quociente eleitoral é matematicamente justo: número de votos válidos divididos pelo número de cadeiras no parlamento. Há países que calculam o quociente usando o número total de eleitores ou da população. Não é justo, pois nem todo mundo vota, e vota válido. O justo é considerar apenas os válidos. Outro ponto para nós. No Brasil, branco e nulo só servem para estatística.
Voltemos ao cacareco. Muitos criticam o sistema proporcional brasileiro por permitir o cacareco, que sozinho ultrapassa o quociente eleitoral várias vezes e leva três ou quatro candidatos inexpressivos juntos como ele.
É esquisito, mas não injusto. Que culpa tem a lei se o eleitor vota no cacareco? A lei leva em conta o voto, sempre. Se o sujeito votou em alguém, sua vontade é respeitada. Se o voto é válido, vale, desculpem o pleonasmo. Quem interpreta tal candidato como cacareco somos nós, não a lei. O legislador, ao elaborar tal norma, estava imbuído de razão. Qualquer que seja o voto (válido) tem de ser computado.
Se alguém mexer nesta característica, para evitar o cacareco, derruba todo o sistema proporcional. É a base dele. Aliás, as vantagens desta metodologia são maiores que as desvantagens. Tem gente que defende o distrital simples para cargo parlamentar. É controverso, como tudo neste mundo, mas muitos asseguram que o distrital puro, por ser majoritário, conduz ao bipartidarismo e prejudica as minorias que não têm dinheiro para investir na campanha e ficam de fora. Digamos que o distrito (bairro) de Santo Amaro, cá na Capital, tenha direito a 10 vereadores. Provavelmente, pelo voto majoritário, serão eleitos os 10 mais ricos. Temos de reconhecer, porém, que o distrital puro apresenta uma senhora vantagem em relação ao nosso proporcional de hoje. Teoricamente, vamos eleger alguém próximo a nós e conhecedor dos problemas de nosso distrito.
Há quem defenda o distrital misto, criação genial dos alemães após a Segunda Guerra, mas muito complicado para explicar e pior para entender. Mas em suma é o seguinte: dos 10 de Santo Amaro, metade seria eleita por majoritário e outra pelo proporcional. Assim, conserva-se a vantagem do vereador ser do nosso bairro e reduz a desvantagem de formar oligarquias, beneficiando a minoria. A desvantagem do criativo sistema alemão é a difícil execução e uma infinidade de variações: podem ser 50% a 50%, 70 a 30, 60 a 40, 90 a 10 e vai por aí. O eleitor teria de sufragar (de novo este verbo horroroso?) duas vezes. Imaginem a dificuldade para entender tal prática se o nosso proporcional já causa tanta celeuma?
Se o sistema eleitoral brasileiro é dos mais democráticos, mesmo porque é recente e foi feito com base no que já existia no mundo, diferente de outros países que adotaram regras, por si só, há séculos, por que sofremos tanto com nossos políticos? Responda como achar melhor, meu amigo. O problema, talvez, não esteja no sistema (a lei) mas na qualidade. Na qualidade do eleitor e do eleito. E para isto, o único remédio é o tempo, que fará (talvez) do brasileiro um eleitor mais crítico. O voto facultativo também poderia colaborar para aumentar a qualidade e reduzir o cacareco, embora apresente algumas desvantagens, também.
Voltarei mais tarde com algumas reflexões sobre o sistema norte-americano. Aí que eu quero ver se vocês continuarão a achar nosso sistema eleitoral injusto. Vocês vão morrer de rir com os ianques. Como é que a maior potência do planeta, o povo mais pragmático da terra, que se ufana de sua democracia bi-centenária, adota um sistema tão anacrônico, burocrático e complicado? É o embate entre tradição e lei. Eles carregam a tradição de cada Estado, desde Washington e Jefferson, e nós brasileiros votamos baseados numa lei federal. Que vale mais? A lei ou a sabedoria dos ancestrais?
Em 1958, chegou a São Paulo, vindo do Rio de Janeiro, o rinoceronte Cacareco, uma das atrações da então inauguração do Zoológico da Capital paulista. O bicho fez tanto sucesso na cidade que nas eleições municipais do ano seguinte recebeu cerca de 100 mil votos para vereador. Na época, tal enxurrada elegeria quase 10 pessoas. O sufrágio (eta palavra feia, pior que ela só escrutínio!) era na mão. Atualmente, com a urna eletrônica, seria impossível a façanha do chifrudo.
Mas a expressão voto cacareco chegou aos nossos dias. É usada, hoje, para definir a preferência do eleitorado por candidato, digamos...esquisito, folclórico, engraçado e geralmente sem currículo político. Mas, sozinho, ele recebe tanto voto que supera o coeficiente eleitoral: votos válidos divididos por vagas no parlamento (válido para vereadores e deputados estaduais/federais). Este voto é chamado de proporcional, diferente do outro (para presidente, governador, prefeito e senador), denominado majoritário, em que (machadianamente) ao vencedor, as batatas. Aliás, o nome correto do coeficiente é quociente eleitoral, por ser resultado de divisão. Outra correção: cacareco era fêmea.
Por que tudo isso? Primeiro, para lembrar que a eleição municipal se avizinha. Cuidado com cacarecos de plantão. Segundo, para dizer que "o sistema eleitoral brasileiro é dos mais democráticos do mundo". Tal afirmação não é minha, pois também tenho dúvidas. Ouvi de um professor de Sociologia nos meus tempos de faculdade. Na época, espantei-me e o questionei no corredor. Ele me disse que não tinha tempo para explicar, que o procurasse depois. Resolvi então, me virar sozinho e fui pesquisar na biblioteca. Não havia Internet. Isso foi no final dos anos 80 e a Constituição era um recém-nascido. E não é que o professor tinha lá suas razões?
Vejamos. Conforme acima, no Brasil a gente pratica voto majoritário (apenas uma vaga em disputa, no caso do senador podem ser duas) para cargo executivo e proporcional para parlamentar. Ponto para nós. Há países supercivilizados (EUA e Inglaterra) que escolhem parlamentar por majoritário (é o chamado distrital simples ou puro), sistema que costuma conduzir ao bipartidarismo, formar oligarquias e prejudicar minorias. O que dizer do presidente americano, então, eleito por colégio eleitoral?
Até o majoritário no Brasil é mais justo. Em localidade com mais de 200 mil habitantes temos segundo turno, exceto para senadores. Há países que adotam maioria simples, fazendo com que um sujeito do executivo seja eleito por 25% a 30% dos votos. O segundo turno garante maioria absoluta e fim de papo. Ponto para nós.
No proporcional, o brasileiro vota em lista aberta. Ou seja: diretamente no candidato. É como se houvesse uma lista em nossa frente e a gente pinçasse nosso candidato de dentro dela. "É você que eu quero, meu fofo." Somente Brasil e Finlândia adotam lista aberta. Nos outros países, a relação de candidatos é fechada e o eleitor escolhe somente partido ou coligação. Os eleitos são os primeiros da lista. Se o partido ou coligação tiver direito a 10 vereadores ou deputados, serão automaticamente os 10 primeiros da relação, feita anteriormente pelos partidos. O eleitor não pode escolher candidatos, apenas o partido. No Brasil, não. Nós escolhemos o sujeito lá dentro, na lista aberta. Mais um ponto para nós.
Nosso quociente eleitoral é matematicamente justo: número de votos válidos divididos pelo número de cadeiras no parlamento. Há países que calculam o quociente usando o número total de eleitores ou da população. Não é justo, pois nem todo mundo vota, e vota válido. O justo é considerar apenas os válidos. Outro ponto para nós. No Brasil, branco e nulo só servem para estatística.
Voltemos ao cacareco. Muitos criticam o sistema proporcional brasileiro por permitir o cacareco, que sozinho ultrapassa o quociente eleitoral várias vezes e leva três ou quatro candidatos inexpressivos juntos como ele.
É esquisito, mas não injusto. Que culpa tem a lei se o eleitor vota no cacareco? A lei leva em conta o voto, sempre. Se o sujeito votou em alguém, sua vontade é respeitada. Se o voto é válido, vale, desculpem o pleonasmo. Quem interpreta tal candidato como cacareco somos nós, não a lei. O legislador, ao elaborar tal norma, estava imbuído de razão. Qualquer que seja o voto (válido) tem de ser computado.
Se alguém mexer nesta característica, para evitar o cacareco, derruba todo o sistema proporcional. É a base dele. Aliás, as vantagens desta metodologia são maiores que as desvantagens. Tem gente que defende o distrital simples para cargo parlamentar. É controverso, como tudo neste mundo, mas muitos asseguram que o distrital puro, por ser majoritário, conduz ao bipartidarismo e prejudica as minorias que não têm dinheiro para investir na campanha e ficam de fora. Digamos que o distrito (bairro) de Santo Amaro, cá na Capital, tenha direito a 10 vereadores. Provavelmente, pelo voto majoritário, serão eleitos os 10 mais ricos. Temos de reconhecer, porém, que o distrital puro apresenta uma senhora vantagem em relação ao nosso proporcional de hoje. Teoricamente, vamos eleger alguém próximo a nós e conhecedor dos problemas de nosso distrito.
Há quem defenda o distrital misto, criação genial dos alemães após a Segunda Guerra, mas muito complicado para explicar e pior para entender. Mas em suma é o seguinte: dos 10 de Santo Amaro, metade seria eleita por majoritário e outra pelo proporcional. Assim, conserva-se a vantagem do vereador ser do nosso bairro e reduz a desvantagem de formar oligarquias, beneficiando a minoria. A desvantagem do criativo sistema alemão é a difícil execução e uma infinidade de variações: podem ser 50% a 50%, 70 a 30, 60 a 40, 90 a 10 e vai por aí. O eleitor teria de sufragar (de novo este verbo horroroso?) duas vezes. Imaginem a dificuldade para entender tal prática se o nosso proporcional já causa tanta celeuma?
Se o sistema eleitoral brasileiro é dos mais democráticos, mesmo porque é recente e foi feito com base no que já existia no mundo, diferente de outros países que adotaram regras, por si só, há séculos, por que sofremos tanto com nossos políticos? Responda como achar melhor, meu amigo. O problema, talvez, não esteja no sistema (a lei) mas na qualidade. Na qualidade do eleitor e do eleito. E para isto, o único remédio é o tempo, que fará (talvez) do brasileiro um eleitor mais crítico. O voto facultativo também poderia colaborar para aumentar a qualidade e reduzir o cacareco, embora apresente algumas desvantagens, também.
Voltarei mais tarde com algumas reflexões sobre o sistema norte-americano. Aí que eu quero ver se vocês continuarão a achar nosso sistema eleitoral injusto. Vocês vão morrer de rir com os ianques. Como é que a maior potência do planeta, o povo mais pragmático da terra, que se ufana de sua democracia bi-centenária, adota um sistema tão anacrônico, burocrático e complicado? É o embate entre tradição e lei. Eles carregam a tradição de cada Estado, desde Washington e Jefferson, e nós brasileiros votamos baseados numa lei federal. Que vale mais? A lei ou a sabedoria dos ancestrais?
quarta-feira, 17 de setembro de 2008
Egalitê e libertê
Otávio Nunes
O velho Marquês de Cavangnour chouteava em seu cavalo pelas planícies verdolengas de sua propriedade em Chateau Brillant, a poucos quilômetros de Paris, naquele lusco-fusco vespertino de 13 de julho de 1789. De repente, um homem atrás de uma árvore gritou.
- Morte à nobreza e liberdade para o povo
Cavangnour assustou-se e quase perdeu o equilíbrio. Só não caiu porque o cavalo, companheiro fiel e impassível às agitações, continuou seu trotar sereno.
Quando chegou em casa, o marquês perguntou a seu capataz quem poderia ser aquele agitador. Somente à noite, o empregado descobriu que o gritador era seu próprio filho.
- Por que você fez isto, Dominique? Podemos ser presos e enviados à Bastilha. O que será de sua mãe e seus irmãos sem nós?
- Hoje, não. Mas amanhã o senhor poderá dizer que fui eu, meu pai.
O velho Marquês de Cavangnour chouteava em seu cavalo pelas planícies verdolengas de sua propriedade em Chateau Brillant, a poucos quilômetros de Paris, naquele lusco-fusco vespertino de 13 de julho de 1789. De repente, um homem atrás de uma árvore gritou.
- Morte à nobreza e liberdade para o povo
Cavangnour assustou-se e quase perdeu o equilíbrio. Só não caiu porque o cavalo, companheiro fiel e impassível às agitações, continuou seu trotar sereno.
Quando chegou em casa, o marquês perguntou a seu capataz quem poderia ser aquele agitador. Somente à noite, o empregado descobriu que o gritador era seu próprio filho.
- Por que você fez isto, Dominique? Podemos ser presos e enviados à Bastilha. O que será de sua mãe e seus irmãos sem nós?
- Hoje, não. Mas amanhã o senhor poderá dizer que fui eu, meu pai.
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
Fita amarela
Otávio Nunes
Historinha baseada na música Tie a yellow ribbon round the ole oak tree, de 1973, do americano Tony Orlando. A canção fez sucesso no Brasil e no mundo, gravada pelo autor e pela dupla de cantoras chamada Dawn
Josmarino, conhecido como Bigode, entrou em sua cela e olhou o calendário. Faltavam oito dias para deixar a prisão. Foram longos quatro anos por causa de uma tentativa de assalto. Pegou caneta e caderno e começou a escrever uma carta para Analísia, sua namorada na época em que fora preso. Nos dois primeiros anos, recebeu visitas dela. Depois, não mais. Muitas missivas enviara, mas apenas duas foram respondidas, de maneira formal, sem emoção. Pareciam escritas apenas por obrigação. “Será que ela ainda me quer? Casou? Tem outro?”, questionava Bigode enquanto escrevia as maltraçadas linhas com sua letra disforme.
Na pequena carta, a menor que ele havia escrito até então, informava apenas a data em que iria deixar a prisão e a seguinte mensagem: “Se você ainda me ama, ainda me aceita de volta, amarre uma fita amarela na árvore em frente a sua casa. Passarei aí de ônibus. Se não enxergar nenhuma fita amarela na velha paineira, não descerei. Seguirei em frente para cuidar de minha vida.”
No dia anterior à sua saída, foi ao barbeiro. Cortou o cabelo e aparou o bigode preto. Na manhã seguinte, despediu-se dos amigos e também dos que não eram.
Dentro do ônibus, que o levaria à casa de Analísia, seu coração batia como pandeiro. Durante os quatro anos, o bairro havia mudado muito, bem como o itinerário do coletivo. Ele tomava o maior cuidado para ler as placas com os nomes das ruas. Em certo momento chegou a perguntar ao motorista se realmente iriam passar na rua que ele queria. “Daqui a pouco”, respondeu o homem.
Assim que o ônibus entrou na rua de Analísia, os passageiros ficaram surpresos. Todas as árvores tinham fita amarela amarrada ao tronco.
Historinha baseada na música Tie a yellow ribbon round the ole oak tree, de 1973, do americano Tony Orlando. A canção fez sucesso no Brasil e no mundo, gravada pelo autor e pela dupla de cantoras chamada Dawn
Josmarino, conhecido como Bigode, entrou em sua cela e olhou o calendário. Faltavam oito dias para deixar a prisão. Foram longos quatro anos por causa de uma tentativa de assalto. Pegou caneta e caderno e começou a escrever uma carta para Analísia, sua namorada na época em que fora preso. Nos dois primeiros anos, recebeu visitas dela. Depois, não mais. Muitas missivas enviara, mas apenas duas foram respondidas, de maneira formal, sem emoção. Pareciam escritas apenas por obrigação. “Será que ela ainda me quer? Casou? Tem outro?”, questionava Bigode enquanto escrevia as maltraçadas linhas com sua letra disforme.
Na pequena carta, a menor que ele havia escrito até então, informava apenas a data em que iria deixar a prisão e a seguinte mensagem: “Se você ainda me ama, ainda me aceita de volta, amarre uma fita amarela na árvore em frente a sua casa. Passarei aí de ônibus. Se não enxergar nenhuma fita amarela na velha paineira, não descerei. Seguirei em frente para cuidar de minha vida.”
No dia anterior à sua saída, foi ao barbeiro. Cortou o cabelo e aparou o bigode preto. Na manhã seguinte, despediu-se dos amigos e também dos que não eram.
Dentro do ônibus, que o levaria à casa de Analísia, seu coração batia como pandeiro. Durante os quatro anos, o bairro havia mudado muito, bem como o itinerário do coletivo. Ele tomava o maior cuidado para ler as placas com os nomes das ruas. Em certo momento chegou a perguntar ao motorista se realmente iriam passar na rua que ele queria. “Daqui a pouco”, respondeu o homem.
Assim que o ônibus entrou na rua de Analísia, os passageiros ficaram surpresos. Todas as árvores tinham fita amarela amarrada ao tronco.
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
No fundo do poço
Otávio Nunes
Gerolina abriu as portas do pequeno armário, procurou embaixo da cama, dentro do guarda-roupa. Nas gavetas da velha cômoda, então, só baratas encontrou. Vasculhou até mesmo o interior da geladeira imaginária, que sonhava ter um dia dentro de seu barraco de madeira na Favela Manhattan.
De comer, só tinha mesmo o resto de um pacote de macarrão ganho na cesta básica do governo. Dinheiro? Estava todo contadinho para tomar os quatro ônibus no dia seguinte para trabalhar como diarista num bairro distante. Pôs as mãos no rosto e sentiu o cheiro delas. Não sabia se o odor era de desinfetante de banheiro, detergente, alho picado, mofo da madeira ou o suor de seu corpo dentro da mesma roupa havia dois dias.
Sentou-se na poltrona, pedindo licença a uma mola solta. Ligou o rádio na única estação que ainda chiava e sentiu vontade de ter uma televisão e uma antena bem comprida no cume do barraco, segura por um cabo de vassoura. Até marido, novamente, Gerolina desejou naquele momento. Depois sorriu. Pelo menos o único bem de sua vida, além de si mesma, já estava para chegar.
Hinário entrou no barraco com a cabeça baixa. Era o filho dela com um poceiro que morreu cinco metros abaixo coberto pela terra de um buraco que não queria ser cavado. O rapaz beijou a mãe. Ela esperou que ele fosse ao banheiro e assim que voltou pediu para que saísse e roubasse algo que pudesse ser vendido rapidamente, para comprar o que não tinham. “Serve qualquer coisa, até um sapato usado.”
O filho, cansado de freqüentar as unidades prisionais do juizado de menores, disse que não poderia mais praticar nenhum furto. “Doutor juiz me disse que, se for pego novamente, não voltarei mais para casa, pois já sou de maior”, balbuciou Hinário. “Por isso mesmo. Só assim você terá um teto que não pinga, beberá água limpa, comerá todo dia e terá meu carinho uma vez por mês. Agora, vá”
Gerolina abriu as portas do pequeno armário, procurou embaixo da cama, dentro do guarda-roupa. Nas gavetas da velha cômoda, então, só baratas encontrou. Vasculhou até mesmo o interior da geladeira imaginária, que sonhava ter um dia dentro de seu barraco de madeira na Favela Manhattan.
De comer, só tinha mesmo o resto de um pacote de macarrão ganho na cesta básica do governo. Dinheiro? Estava todo contadinho para tomar os quatro ônibus no dia seguinte para trabalhar como diarista num bairro distante. Pôs as mãos no rosto e sentiu o cheiro delas. Não sabia se o odor era de desinfetante de banheiro, detergente, alho picado, mofo da madeira ou o suor de seu corpo dentro da mesma roupa havia dois dias.
Sentou-se na poltrona, pedindo licença a uma mola solta. Ligou o rádio na única estação que ainda chiava e sentiu vontade de ter uma televisão e uma antena bem comprida no cume do barraco, segura por um cabo de vassoura. Até marido, novamente, Gerolina desejou naquele momento. Depois sorriu. Pelo menos o único bem de sua vida, além de si mesma, já estava para chegar.
Hinário entrou no barraco com a cabeça baixa. Era o filho dela com um poceiro que morreu cinco metros abaixo coberto pela terra de um buraco que não queria ser cavado. O rapaz beijou a mãe. Ela esperou que ele fosse ao banheiro e assim que voltou pediu para que saísse e roubasse algo que pudesse ser vendido rapidamente, para comprar o que não tinham. “Serve qualquer coisa, até um sapato usado.”
O filho, cansado de freqüentar as unidades prisionais do juizado de menores, disse que não poderia mais praticar nenhum furto. “Doutor juiz me disse que, se for pego novamente, não voltarei mais para casa, pois já sou de maior”, balbuciou Hinário. “Por isso mesmo. Só assim você terá um teto que não pinga, beberá água limpa, comerá todo dia e terá meu carinho uma vez por mês. Agora, vá”
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
Orquídea negra
Otávio Nunes
Todos os convidados estavam estupefatos com aquela maravilha de flor: a orquídea negra, com pintinhas amarelas e um beicinho que parecia de mulher vaidosa. Valeu a pena esperar tanto tempo, pensou o pesquisador da universidade, que convidou centenas de pessoas, incluindo a imprensa, para noticiar o solene ato. Afinal de contas, aquela flor misteriosa e rara, uma das poucas no mundo, só dava as caras de cinco em cinco anos e mesmo assim às vezes enganava as pessoas e não aparecia. “Uma dádiva da natureza”, explicou o professor a um grupo de convidados.
Enquanto isso, na copa, Dona Margarida, encontrava-se assoberbada de tanto trabalho. Teria de preparar uma centena de cafezinho para distribuir aos convidados. Minutos depois, saiu a equilibrar a bandeja enorme cheia de copinhos de plásticos com café. Ao tentar passar por cima do fio da câmera da equipe de televisão, Dona Margarida tropeçou. Antes de se estatelar no chão, derrubou o vaso e caiu sentada em cima da orquídea, cujos beicinhos se fecharam com o peso. “Num tem pobrema. Ela naci di novu, mais não esta que eu acabei de amassá”, disse a copeira já em pé, sacudindo as bolinhas pretas do avental branco.
Todos os convidados estavam estupefatos com aquela maravilha de flor: a orquídea negra, com pintinhas amarelas e um beicinho que parecia de mulher vaidosa. Valeu a pena esperar tanto tempo, pensou o pesquisador da universidade, que convidou centenas de pessoas, incluindo a imprensa, para noticiar o solene ato. Afinal de contas, aquela flor misteriosa e rara, uma das poucas no mundo, só dava as caras de cinco em cinco anos e mesmo assim às vezes enganava as pessoas e não aparecia. “Uma dádiva da natureza”, explicou o professor a um grupo de convidados.
Enquanto isso, na copa, Dona Margarida, encontrava-se assoberbada de tanto trabalho. Teria de preparar uma centena de cafezinho para distribuir aos convidados. Minutos depois, saiu a equilibrar a bandeja enorme cheia de copinhos de plásticos com café. Ao tentar passar por cima do fio da câmera da equipe de televisão, Dona Margarida tropeçou. Antes de se estatelar no chão, derrubou o vaso e caiu sentada em cima da orquídea, cujos beicinhos se fecharam com o peso. “Num tem pobrema. Ela naci di novu, mais não esta que eu acabei de amassá”, disse a copeira já em pé, sacudindo as bolinhas pretas do avental branco.
quinta-feira, 4 de setembro de 2008
Isto que é talento
Otávio Nunes
- Meu amigo, veja você como o talento pode brotar de repente mesmo num terreno infértil e arenoso. Conheço um jovem do interior que jamais tinha posto os pés num teatro. Numa breve visita à minha casa, cá na capital, levei-o para assistir a uma peça de Bertolt Brecht. O rapaz se encantou. Algo dentro de si acendeu, como um facho de luz nas trevas. Hoje, ele é um ator famoso, supercompetente, premiado e de renome internacional. Insigne amigo, você já presenciou algo desta natureza, uma alma que se achou e escapou do inferno da mediocridade?- - Sim, meu chapa. Tenho um primo, também do interior, que certa vez veio me visitar aqui na capital e foi assaltado na rua. O fato marcou ele pra sempre e hoje o danado é o mais famoso e procurado ladrão do país.
- Meu amigo, veja você como o talento pode brotar de repente mesmo num terreno infértil e arenoso. Conheço um jovem do interior que jamais tinha posto os pés num teatro. Numa breve visita à minha casa, cá na capital, levei-o para assistir a uma peça de Bertolt Brecht. O rapaz se encantou. Algo dentro de si acendeu, como um facho de luz nas trevas. Hoje, ele é um ator famoso, supercompetente, premiado e de renome internacional. Insigne amigo, você já presenciou algo desta natureza, uma alma que se achou e escapou do inferno da mediocridade?- - Sim, meu chapa. Tenho um primo, também do interior, que certa vez veio me visitar aqui na capital e foi assaltado na rua. O fato marcou ele pra sempre e hoje o danado é o mais famoso e procurado ladrão do país.
segunda-feira, 1 de setembro de 2008
No elevador
Otávio Nunes
Pela primeira vez, depois de alguns meses, os dois ficaram sozinhos no elevador. Não sabiam o que falar ao outro. “Ela mudou de perfume”, pensou ele. “Ele anda relapso, com a barba por fazer e a camisa malpassada”, pensou ela.
Envergonhados e tímidos, não estavam preparados para um momento como aquele e lamentaram até a falta de ascensorista no elevador da empresa e torciam para que outro funcionário entrasse. Ainda faltavam mais de dez andares para chegar onde trabalhavam, em departamentos diferentes. “Será que ela ainda me odeia?”, “Eu acho que ele nunca vai me perdoar.”
Os momentos ternos do passado voltaram à mente de cada um. E como a vida é madrasta e cômica, lembraram-se de que tudo havia começado numa conversa no mesmo elevador. E lá se iam dois meses do último encontro, do último beijo, da última... Embora fosse difícil assimilar e assumir, eles ainda pensavam num provável retorno. Mas dar o braço a torcer, jogar o orgulho pela janela, reconhecer erros... “Não sei o que dizer”, pensou ela. Ele, também.
Sentiam vontade de entabular uma conversa. Ensaiavam trejeitos para falar algo ao outro e a voz não saía. Ele pigarreou e ajeitou a gravata torta. Ela passou a mão sobre o cabelo, temendo estar despenteada. Ele coçou a testa e olhou de soslaio para o teto do elevador. Os olhos dela voltaram-se para o chão, como se procurasse algo que caiu.
De repente, seus olhares se encontraram novamente, como da primeira vez, e os lábios iam se mover para pronunciar algo. Não deu tempo. O elevador parou, abriu a porta e ambos se dirigiram a seus departamentos.
Pela primeira vez, depois de alguns meses, os dois ficaram sozinhos no elevador. Não sabiam o que falar ao outro. “Ela mudou de perfume”, pensou ele. “Ele anda relapso, com a barba por fazer e a camisa malpassada”, pensou ela.
Envergonhados e tímidos, não estavam preparados para um momento como aquele e lamentaram até a falta de ascensorista no elevador da empresa e torciam para que outro funcionário entrasse. Ainda faltavam mais de dez andares para chegar onde trabalhavam, em departamentos diferentes. “Será que ela ainda me odeia?”, “Eu acho que ele nunca vai me perdoar.”
Os momentos ternos do passado voltaram à mente de cada um. E como a vida é madrasta e cômica, lembraram-se de que tudo havia começado numa conversa no mesmo elevador. E lá se iam dois meses do último encontro, do último beijo, da última... Embora fosse difícil assimilar e assumir, eles ainda pensavam num provável retorno. Mas dar o braço a torcer, jogar o orgulho pela janela, reconhecer erros... “Não sei o que dizer”, pensou ela. Ele, também.
Sentiam vontade de entabular uma conversa. Ensaiavam trejeitos para falar algo ao outro e a voz não saía. Ele pigarreou e ajeitou a gravata torta. Ela passou a mão sobre o cabelo, temendo estar despenteada. Ele coçou a testa e olhou de soslaio para o teto do elevador. Os olhos dela voltaram-se para o chão, como se procurasse algo que caiu.
De repente, seus olhares se encontraram novamente, como da primeira vez, e os lábios iam se mover para pronunciar algo. Não deu tempo. O elevador parou, abriu a porta e ambos se dirigiram a seus departamentos.
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