Otávio Nunes
Em 1958, chegou a São Paulo, vindo do Rio de Janeiro, o rinoceronte Cacareco, uma das atrações da então inauguração do Zoológico da Capital paulista. O bicho fez tanto sucesso na cidade que nas eleições municipais do ano seguinte recebeu cerca de 100 mil votos para vereador. Na época, tal enxurrada elegeria quase 10 pessoas. O sufrágio (eta palavra feia, pior que ela só escrutínio!) era na mão. Atualmente, com a urna eletrônica, seria impossível a façanha do chifrudo.
Mas a expressão voto cacareco chegou aos nossos dias. É usada, hoje, para definir a preferência do eleitorado por candidato, digamos...esquisito, folclórico, engraçado e geralmente sem currículo político. Mas, sozinho, ele recebe tanto voto que supera o coeficiente eleitoral: votos válidos divididos por vagas no parlamento (válido para vereadores e deputados estaduais/federais). Este voto é chamado de proporcional, diferente do outro (para presidente, governador, prefeito e senador), denominado majoritário, em que (machadianamente) ao vencedor, as batatas. Aliás, o nome correto do coeficiente é quociente eleitoral, por ser resultado de divisão. Outra correção: cacareco era fêmea.
Por que tudo isso? Primeiro, para lembrar que a eleição municipal se avizinha. Cuidado com cacarecos de plantão. Segundo, para dizer que "o sistema eleitoral brasileiro é dos mais democráticos do mundo". Tal afirmação não é minha, pois também tenho dúvidas. Ouvi de um professor de Sociologia nos meus tempos de faculdade. Na época, espantei-me e o questionei no corredor. Ele me disse que não tinha tempo para explicar, que o procurasse depois. Resolvi então, me virar sozinho e fui pesquisar na biblioteca. Não havia Internet. Isso foi no final dos anos 80 e a Constituição era um recém-nascido. E não é que o professor tinha lá suas razões?
Vejamos. Conforme acima, no Brasil a gente pratica voto majoritário (apenas uma vaga em disputa, no caso do senador podem ser duas) para cargo executivo e proporcional para parlamentar. Ponto para nós. Há países supercivilizados (EUA e Inglaterra) que escolhem parlamentar por majoritário (é o chamado distrital simples ou puro), sistema que costuma conduzir ao bipartidarismo, formar oligarquias e prejudicar minorias. O que dizer do presidente americano, então, eleito por colégio eleitoral?
Até o majoritário no Brasil é mais justo. Em localidade com mais de 200 mil habitantes temos segundo turno, exceto para senadores. Há países que adotam maioria simples, fazendo com que um sujeito do executivo seja eleito por 25% a 30% dos votos. O segundo turno garante maioria absoluta e fim de papo. Ponto para nós.
No proporcional, o brasileiro vota em lista aberta. Ou seja: diretamente no candidato. É como se houvesse uma lista em nossa frente e a gente pinçasse nosso candidato de dentro dela. "É você que eu quero, meu fofo." Somente Brasil e Finlândia adotam lista aberta. Nos outros países, a relação de candidatos é fechada e o eleitor escolhe somente partido ou coligação. Os eleitos são os primeiros da lista. Se o partido ou coligação tiver direito a 10 vereadores ou deputados, serão automaticamente os 10 primeiros da relação, feita anteriormente pelos partidos. O eleitor não pode escolher candidatos, apenas o partido. No Brasil, não. Nós escolhemos o sujeito lá dentro, na lista aberta. Mais um ponto para nós.
Nosso quociente eleitoral é matematicamente justo: número de votos válidos divididos pelo número de cadeiras no parlamento. Há países que calculam o quociente usando o número total de eleitores ou da população. Não é justo, pois nem todo mundo vota, e vota válido. O justo é considerar apenas os válidos. Outro ponto para nós. No Brasil, branco e nulo só servem para estatística.
Voltemos ao cacareco. Muitos criticam o sistema proporcional brasileiro por permitir o cacareco, que sozinho ultrapassa o quociente eleitoral várias vezes e leva três ou quatro candidatos inexpressivos juntos como ele.
É esquisito, mas não injusto. Que culpa tem a lei se o eleitor vota no cacareco? A lei leva em conta o voto, sempre. Se o sujeito votou em alguém, sua vontade é respeitada. Se o voto é válido, vale, desculpem o pleonasmo. Quem interpreta tal candidato como cacareco somos nós, não a lei. O legislador, ao elaborar tal norma, estava imbuído de razão. Qualquer que seja o voto (válido) tem de ser computado.
Se alguém mexer nesta característica, para evitar o cacareco, derruba todo o sistema proporcional. É a base dele. Aliás, as vantagens desta metodologia são maiores que as desvantagens. Tem gente que defende o distrital simples para cargo parlamentar. É controverso, como tudo neste mundo, mas muitos asseguram que o distrital puro, por ser majoritário, conduz ao bipartidarismo e prejudica as minorias que não têm dinheiro para investir na campanha e ficam de fora. Digamos que o distrito (bairro) de Santo Amaro, cá na Capital, tenha direito a 10 vereadores. Provavelmente, pelo voto majoritário, serão eleitos os 10 mais ricos. Temos de reconhecer, porém, que o distrital puro apresenta uma senhora vantagem em relação ao nosso proporcional de hoje. Teoricamente, vamos eleger alguém próximo a nós e conhecedor dos problemas de nosso distrito.
Há quem defenda o distrital misto, criação genial dos alemães após a Segunda Guerra, mas muito complicado para explicar e pior para entender. Mas em suma é o seguinte: dos 10 de Santo Amaro, metade seria eleita por majoritário e outra pelo proporcional. Assim, conserva-se a vantagem do vereador ser do nosso bairro e reduz a desvantagem de formar oligarquias, beneficiando a minoria. A desvantagem do criativo sistema alemão é a difícil execução e uma infinidade de variações: podem ser 50% a 50%, 70 a 30, 60 a 40, 90 a 10 e vai por aí. O eleitor teria de sufragar (de novo este verbo horroroso?) duas vezes. Imaginem a dificuldade para entender tal prática se o nosso proporcional já causa tanta celeuma?
Se o sistema eleitoral brasileiro é dos mais democráticos, mesmo porque é recente e foi feito com base no que já existia no mundo, diferente de outros países que adotaram regras, por si só, há séculos, por que sofremos tanto com nossos políticos? Responda como achar melhor, meu amigo. O problema, talvez, não esteja no sistema (a lei) mas na qualidade. Na qualidade do eleitor e do eleito. E para isto, o único remédio é o tempo, que fará (talvez) do brasileiro um eleitor mais crítico. O voto facultativo também poderia colaborar para aumentar a qualidade e reduzir o cacareco, embora apresente algumas desvantagens, também.
Voltarei mais tarde com algumas reflexões sobre o sistema norte-americano. Aí que eu quero ver se vocês continuarão a achar nosso sistema eleitoral injusto. Vocês vão morrer de rir com os ianques. Como é que a maior potência do planeta, o povo mais pragmático da terra, que se ufana de sua democracia bi-centenária, adota um sistema tão anacrônico, burocrático e complicado? É o embate entre tradição e lei. Eles carregam a tradição de cada Estado, desde Washington e Jefferson, e nós brasileiros votamos baseados numa lei federal. Que vale mais? A lei ou a sabedoria dos ancestrais?
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