quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Vitória

Otávio Nunes

Um cavalo aproximou-se da égua Vitória, que pastava serenamente do outro lado da cerca, escolhendo os ramos mais verdinhos do capim. Um breve relincho de macho fez com que ela levantasse a cabeça. Ao ver o garanhão, abanou cortesmente sua cauda peluda. Como a porteira entre as duas fazendas estava aberta, o que era raro, Vitória juntou-se ao amigo e saíram ambos trotando calmamente, andaram tanto que até chegaram ao centro da pequena cidade de Beiradinha, cortada pelo Rio Dorminhoco. O rio tem este nome por que suas águas se movimentam lentamente. Diz a lenda local que quem o olha muito sente sono.
Minutos depois, apareceu um funcionário da prefeitura e espantou os bichos. O cavalo correu. Vitória, não. Como estava com um corda no pescoço, foi fácil ao funcionário puxá-la e levá-la ao galpão da prefeitura.
O novo prefeito, ansioso por aumentar a arrecadação do município, para construir uma terceira ponte sobre o Dorminhoco, conseguiu aprovar na câmara uma lei que proibia a circulação de animais no perímetro urbano de Beiradinha. Muitos o aconselharam da impopularidade de tal medida.
Era uma questão cultural, trazida e curtida pelos anos, de que os animais sempre perambularam pelas ruas sem que jamais alguém achasse aquilo estranho. Qualquer bicho ali sempre fora tratado como vaca nas ruas de Nova Déli ou Bombaim, na Índia.
Mas o imposto foi aprovado e estava vigorando. Como bicho não costuma ter dinheiro no bolso, nem o canguru, que tem bolso, o dono do animal seria obrigado a pagar a taxa.
Assim que Dona Branca foi avisada, saiu correndo em direção à prefeitura. Em seu gabinete, o alcaide lhe disse que teria de pagar a taxa para levar Vitória de volta. A fazendeira lembrou que jamais sua égua havia deixado a propriedade.
“Sou uma pessoa responsável, sempre cuidei bem de meus animais e pago certinho todos os impostos. Não é justo pagar para retirar minha égua do galpão municipal”, suplicou Dona Branca. O prefeito insistiu na cobrança.
A senhora entrou no galpão e viu Vitória feliz da vida, balançando a cauda e a cabeça diversas vezes, ao reconhecer a dona. Puxou a égua pela corda e a retirou do depósito. Ao ver a mulher e a égua, já na rua, o prefeito exigiu novamente o pagamento da taxa.

- Não vou pagar coisa alguma. Se for homem, venha me prender. Né, Vitória?

E as duas voltaram felizes para casa, cantarolando e relinchando.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Uma vez flamengo

Otávio Nunes

Soube de um caso interessante na internet sobre a Bélgica, país onde existem dois povos que não convivem de forma tão harmoniosa como a humanidade imagina. São os flamengos (da região de Flandres e que falam holandês) e os valões (franceses, da Valônia). Tem gente que acha que a Federação Belga está com os anos contados. Vamos ao caso curioso que li faz pouco, mas que ocorreu em 2007.
O líder político do Norte flamengo é Yves Leterme. Curioso, né? É da parte holandesa mas tem nome afrancesado. Pois este cidadão foi primeiro-ministro em 2007 e renunciou por não conseguir formar governo de coalizão com os valões. Quem está em seu lugar hoje? Não sei e também não importa.
Quando na chefia do governo, enquanto participava de uma cerimônia oficial, Leterme foi abordado por um repórter que pediu para ele cantarolar o início do hino nacional belga. O político entoou a primeira parte de A Marselhesa, que o mundo todo, incluindo os nove planetas, sabe que é o hino francês. E não foi sua única gafe. O mesmo jornalista quis saber qual a principal data nacional belga (algo como o nosso sete de setembro) e Leterme citou outra que nada tinha de importante, nem sequer era feriado.
Com um líder flamengo assim, a Bélgica não corre perigo de secessão mas também não consegue montar gabinete de coalizão. Ou seja, continuam divididos, apesar de juntos.
A propósito, o hino belga chama-se Brabanconne. É cantado em francês ou holandês? Sei lá. Talvez nas duas.
Este país é mesmo cumpricado. Se não bastassem as duas línguas, há uma terceira, a alemã, falada numa região fronteiriça. Taí uma coisa bacana. Cada belga conhece no mínimo três idiomas. Parece legal, né? Mas na prática não é bem assim. Tem belga que não tá nem aí como a língua do conterrâneo. Há casos de turistas brasileiros que fizeram perguntas em francês a belgas flamengos que ignoraram por completo.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Rei da rima

Otávio Nunes

O poeta português Bocage (1765/1803), cujo nome completo era Manuel Maria Barbosa Du Bocage, assoviava feliz da vida enquanto passeava pelo cais da Cidade do Porto à procura de inspiração para novo poema. De repente, um dos marinheiros o reconheceu e o saudou.
- Grande poeta Bocage, é um honra tê-lo cá perto de nós
- Estou a passear pois gosto do ar marinho, onde posso espairecer as roupas de minh’alma, disse o poeta
- Relevante e inspirado artista lusitano, ouvi dizer que és capaz de achar rima para todas as palavras
- É o que dizem, embora concorde pouco com tal elogio, singrante marinheiro. Mas vá lá, oh pá, para qual palavra procuras rima?
- Estamos de partida para as Índias. Por isso, quero que descubras uma rima para esta palavra
- Rima para Índias?, homem do mar?
- Sim, Bocage
- Para onde irão estas caixas cá no cais?
- Vamos levá-las paras a Índias, disse o marinheiro
- Então, guinde-as

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Cordilheiras

Otávio Nunes

Pequena crônica cruel baseada na música homônima de Paulo César Pinheiro e Sueli Costa, gravada por Simone, em 1979.

Quero ser o comandante que humilha seus soldados e elogia os farsantes e covardes. Levarei meus pelotões propositalmente, aos poucos, para enfrentar um inimigo dez vezes mais poderoso, até que o último de meus combatentes tombe a meus pés, clamando piedade.
Pretendo usurpar o recém-nascido do colo da mãe, enquanto mama. Direi à pobre mulher que presto favor a ambos ao evitar um futuro incerto da criança, crescendo ao lado dela, e os aborrecimentos que traz um filho a quem o gerou.
Minha idéia é substituir a língua e a cultura deste povo infeliz por outras de uma sociedade bem distante, mais evoluída. Transformarei esta terra inútil numa colônia subserviente que abaixe a cabeça sempre que o dominador passar, sem pedir licença.
Submeterei os moços ao poder dos velhos. Farei com que a juventude se torne um exército de aflitos e errantes na vida.
Levarei a cabo experiência para adaptar os peixes à terra firme. Despovoarei lagos, rios e mares para provar que este seres aquáticos só irão evoluir quando deixar a água.
Quero ter a mesma sensação das cordilheiras ao desabar sua aridez e seu gelo sobre as flores inocentes e rasteiras que teimam em crescer nos desvãos da rocha. Irei me divertir com o desespero da presa nas garras do predador.
Pretendo apenas ser cruel e algoz, naturalmente. Descerei aos porões, ao mundo abissal. Pisarei no lodo e atravessarei pântanos. Quero descobrir onde o mal nasce e destruir sua nefasta semente.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Julgamento

Otávio Nunes
- Por tudo isto que aqui foi relatado e mostrado, o Estado pede a condenação do réu pelo assassinato doloso de sua esposa.
Com esta frase, o promotor encerrou sua tese e voltou à cadeira. Diante das fortes acusações e das provas apresentadas, o advogado de defesa pensou rapidamente numa idéia desesperada para salvar seu cliente. Dirigiu-se ao júri e, com sua voz forte e trejeitos teatrais, levantou a seguinte proposição.
- Caros membros do júri. Todos os dias meu cliente ouvia as seguintes lamúrias de sua insensata esposa. “Tire esta sandália daqui, desligue a televisão, saia do telefone, esquente a comida, lave a louça, passe suas cuecas, pague a empregada, leve os filhos à escola, pegue os filhos na escola, vá à reunião dos pais na escola, pague a mensalidade da escola, dê descarga no banheiro, estenda no varal sua toalha molhada, não esqueça de comprar bife de coxão mole em vez de acém, pare de usar este desodorante fedorento, não esqueça meu aniversário, procure um médico para curar este ronco de porco, lave direito os pés para acabar com este chulé, pare de paquerar a empregada, vá beber seu uísque no boteco, não me encha o saco enquanto assisto à novela, pare de ler na cama, melhore seu desempenho sexual, compre um carro zero quilômetro e aposente sua lata velha, não mencione minha idade para ninguém, pare de gritar a cada gol do seu time, me leve ao restaurante pelo menos uma vez por mês, diminua esta barriga, faça seu café quando acordar, elogie meu novo penteado...”
Ao encerrar o rosário de reclamações, o advogado de defesa clamou.
- Digam-me membros do júri, o meu cliente é culpado por ter matado sua esposa?
Pouco depois, o juiz leu o veredicto: “inocente”.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Perdidos na lembrança

Otávio Nunes

Parado num farol da Avenida Marquês de São Vicente, na Barra Funda, ouvi no carro ao lado uma música americana muito bonita e antiga, da década de 70, chamada Everybody’s talking. Quem gravou foi o cantor Harry Nilsson, mais conhecido no Brasil pelo seu sobrenome. De repente, ali no cruzamento, em poucos segundos, vieram à minha mente lembranças guardadas no baú do passado.
A primeira: esta canção foi trilha sonora de um filme também maravilhoso, que no Brasil passou com o nome de Perdidos na noite. O original inglês era Midnight Cowboy (Cowboy da meia-noite). Ganhou três Oscar, incluindo melhor filme e direção (John Schlesinger). Na história, o ator Jon Voight interpreta um texano xarope que quer ganhar dinheiro como garoto de programa em Nova Iorque, onde conhece o vagabundo Ratsy (Dustin Hoffman), em início de carreira, mas já supertalentoso. Hoffman dá um show de interpretação.
Pois bem: Rutsy se oferece para ser o agente (empresário) de Voight, encarregado de arrumar mulheres ricas interessadas em pagar por algumas horas de prazer. Nada dá certo para a dupla. Voight transa com uma prostituta, é obrigado a pagar e fica sem grana. O filme mostra a outra face da sociedade norte-americano: o looser (o perdedor) ao invés do winner (vencedor).
Na lembrança 2, Everybody’s talking não se tornou o principal sucesso de Nilsson no Brasil. Seu maior êxito, foi Without you (Sem você). Era a época dos bailinhos e eu dancei muito esta música. Cheguei até a comprar o disco, compacto simples, uma “bolachinha” de vinil, com uma música de cada lado. O sucesso vinha no lado A e ninguém se importava com o B. Whitout you fez sucesso recentemente, coisa de um ou dois anos, como uma das músicas da novela das nove da Globo. Não lembro qual. No entanto, a voz não era a de Nilsson, tratava-se de regravação. Uma pena. Ele tinha a voz muito bonita. Aliás, se não me engano, John Lennon chegou a observar que Nilsson era o melhor cantor americano da época.
Na lembrança 3, Perdidos na noite se tornou o nome do primeiro programa do Fausto Silva na televisão, na TV Gazeta, canal 11, nos anos 80. Um programa de auditório todo espontâneo e muito engraçado. Uma verdadeira bagunça. Faustão falava para o espectador: “Se você quer coisa melhor, mude de canal. Na Globo está passando o filme tal, no SBT o programa tal”. A platéia rolava de rir.
Depois, o programa se transferiu para a Record e para a Bandeirantes, não sei se com o mesmo nome. Até que a Globo o contratou.
Não tinha planejado a lembrança 4. Porém meu amigo de redação, Rogério Silveira, me lembrou que o Jon Voight é pai da belíssima Angelina Jolie. Infelizmente, a relação entre eles não é das melhores porque o Voight, quase setentão hoje, teria dito numa entrevista que a filha teve problemas mentais na meninice.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Em nome da moral

Otávio Nunes

A garota levantou-se da cama e se espreguiçou. Olhou para o companheiro e viu que ele ainda dormia, roncava como um porco asmático e babava no travesseiro. Ainda nua, se encaminhou para a pequena mesa do quarto de hotel e, curiosa, abriu uma pasta preta com carimbo oficial e as palavras Senado Federal. Dentro da pasta havia um calhamaço de papéis em forma de apostila. Abriu o documento e leu o primeiro parágrafo. "Nobres colegas. É com enorme regozijo que recebo a honraria de presidir a recém-criada Comissão da Moral e dos Bons Costumes. Comissão esta que eu e mais um punhado de renitentes cavalheiros deste parlamento, em um esforço hercúleo, tanto lutamos para que fosse criada dentro desta casa." Assim que percebeu que o dorminhoco estava acordando, a garota fechou a apostila.
- Você estava lendo meu discurso? Perguntou o homem.
- Só vi o começo. Está bonito. Você escreve bem. Respondeu a moça, com voz dengosa e se enrolando na toalha.
- Na verdade – disse o homem, levantando-se da cama e vestindo a cueca -, foi meu assessor de imprensa quem escreveu, baseado numa gravação que fiz para ele.
– Seus colegas devem ter gostado, disse ela.
Ele riu, ainda meio sonolento, e emendou.
- Espero que gostem. Vou ler hoje à tarde, na abertura de trabalhos da comissão que vou presidir.
Tomaram um banho e pediram o café da manhã ao serviço do hotel. Enquanto comiam um croissant de queijo, ele explicou a ela que a nova comissão tinha por objetivo estudar e propor idéias sobre a moral e os bons costumes no país, conceitos que estavam sendo ultrajados e aviltados pela sociedade moderna.
- É impressionante como nossas famílias estão sendo desmoronadas. Nossas meninas se engravidam muito cedo, nossos rapazes não têm juízo e nem preparo para ser pais. Os casamentos não duram mais que semanas. Precisamos dar um basta nesta imoralidade, nesta sodomia.
A garota, parecendo entender o que o companheiro dizia, balançava a cabeça positivamente. Porém, de repente mudou de assunto.
- Como está sua mulher?
Embora não esperasse a pergunta, ele respondeu calmamente.
- Ótima. O problema dela era falta do que fazer. Passava o dia todo conversando com as amigas, torrando o cartão de crédito no shopping e ainda sobrava tempo para ficar pensando coisas a meu respeito.
Mordeu uma fatia de mamão e continuou.
- Agora não. Arrumei um serviço para ela num ministério. Não precisa ir lá todo dia, mas vai assim mesmo. Acredito que esteja até trabalhando. Pelo menos sai de casa todo dia cedo e me telefona quando chega lá.
Ele contou também para a garota que não podia se separar, porque no ano seguinte sairia candidato a governador em seu estado.
- E governador tem de ter mulher. E o estado tem de ter primeira-dama, justificou com ar sério, mas forçado, e perguntou à garota.
- Você tem o telefone daquela sua amiga moreninha, a ...Pô, além de perder o número dela, esqueci também o nome.
- Deve ser a Mônica.
- Não. A Mônica não. É aquela bem morena, mulata mesmo, que tem uma pinta perto do umbigo.
- Ah! Agora sei. É a Vaneide, respondeu a moça, fingindo ciúme.
- Essa mesmo. Não fique chateada, mas estou com vontade de mudar um pouco.
- Você muda mais de mulher ou de partido político? Questionou a garota, de forma zombeteira.
- Boa pergunta. Entre todas elas, acho você a mais esperta e provocadora, respondeu, agarrando-a carinhosamente pela cintura e tirando a toalha que a cobria.
- Em nome da moral? Brincou a garota.
- Em nome da moral - bradou, imitando e gesticulando um discurso - e dos bons costumes de nosso povo, completou o senador.
E rolaram felizes pela cama de água.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Amigo invisível

Otávio Nunes

Amigo invisível na infância todos têm. É comum no mundo dos pequenos. Mas conforme o tempo avança, e infelizmente toma contato com o mundo adulto, o infante esquece aquele amiguinho que um dia lhe fez companhia. Eu também passei por isso, é claro. Só que nos últimos anos, no adentrar da idade, reatei amizade com aquele ser que me acompanhou na meninice. Em outras palavras mais simples, sem bordar o texto: dei para falar sozinho.
Um dos lugares favoritos em que desando a prosear com meu coleguinha invisível é no carro, onde ele está sempre no banco ao lado. Já aconteceu de se sentar atrás, mas eu ralhei. “Oh meu, vem pra frente. Não sou motorista de táxi nem quero pegar torcicolo.”
Certa feita, conversava alegremente com ele sem perceber que estava numa avenida superhipermegamovimentada e com a janela do carro escancarada, por causa do calor. Parei no farol e continuei o papo animado, a respeito do livro que estava lendo no momento, o 1808, do jornalista Laurentino Gomes, sobre a Família Real no Brasil. Muito legal. Receito e empresto a quem quiser. Para o pessimista exacerbado, cá vai um consolo: Já fomos piores.
Com o farol fechado, um senhor do carro ao lado olhou-me surpreso, como se perguntasse “com quem este idiota tanto conversa?”.
Fiquei envergonhado, pois o idiota era eu. Acho que exagerei no bate-papo e me senti ridículo. Notei então que precisava me policiar mais. Fechei a cara, como homem sério, fiz de conta de que não era comigo e prometi a mim mesmo não mais falar sozinho, para não passar vergonha outra vez.
Abriu o farol e propositalmente demorei um pouco para sair, de modo a deixar aquele motorista bem a frente de mim. Tanto que no próximo farol só eu parei. Ele continuou em frente. Ainda bem, porque o papo com meu amigo invisível estava ótimo e sem aquele chato para atrapalhar.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Povo de São Paulo!

Otávio Nunes

O general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott é conhecido em nossa história por ter sido homem de convicções democrática e legalista. Não gostava de golpes de estado ou quarteladas. Em 1955, garantiu a posse do eleito Juscelino, cujo governo era então ameaçado pela direitista UDN (União Democrática Nacional), que planejava um golpe.
Em 1960, já marechal e na reserva, mas com nome ainda impoluto e respeitado no País, candidatou-se a presidente da República. Seu oponente era Jânio Quadros, que acabou sendo eleito, governou por seis meses e renunciou, deixando o Brasil numa situação das mais complicadas. Seu vice, João Goulart, o Jango, quase foi impedido de assumir e inventaram até parlamentarismo para que ele não tivesse poderes.
O governo de Jango foi traumático. O País se dividiu e as forças conservadoras conspiraram, boicotaram, sabotaram, sacanearam. Ele não tinha respaldo algum do Congresso, onde não conseguia aprovar nem nome de rua. Enfim, o valente e teimoso gaúcho foi afastado pelo golpe militar de 1964.
Paro por aqui. Tudo isto aí em cima é para relembrar e homenagear o democrata Lott, que não compactuou com a ditadura militar e até foi preso na época. Infelizmente, o marechal já estava velho, então, para lutar contra os inimigos da democracia. Morreu em 1984, consta-se, sem ao menos receber honras de oficial do exército brasileiro.
Minha historinha é sobre ele, Lott, um sujeito decente que acreditava nas leis. No entanto, ao que parece, não tinha muito jeito para a política. O que costuma ser comum entre os homens de bem. Ouvi este relato num programa de televisão, há anos e agora o fato voltou à minha cabeça.
É o seguinte. Na campanha presidencial de 1960, o nosso herói veio a São Paulo na tentativa de alavancar sua candidatura aqui na terra do rival, Jânio Quadros. Do alto do palanque, o marechal Lott iniciou seu discurso, que provou sua inabilidade política, mas não o desabonou como homem.
- “Povo de São Paulo!!! É com imenso prazer que visito vocês. A primeira vez em que pus meus pés nesta terra foi em 1932 para lutar contra vocês na Revolução Constitucionalista...” Coitado, tinha mesmo de perder a eleição.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Meu vizinho

Otávio Nunes

Certo dia, quando moleque eu era, cabulei a aula para ir ao cinema com minha turma. Na saída, topei com meu vizinho abraçado a uma mulher, que não era a dele. Ficamos nos encarando por alguns segundos sem saber o que dizer um ao outro. Mas ficou por isso mesmo. No entanto, na volta para casa, o sujeito pegou o mesmo ônibus que eu e nos olhamos novamente. E, outra vez, sem palavras.
Meu vizinho, cujo nome o tempo já levou de minha memória, tinha na época uns 30 anos e eu, 13 ou 14. Não éramos amigos, apenas nos cumprimentávamos de vez em quando. Quem o conhecia melhor era meu pai. Pois às vezes ambos viravam parceiros de boteco nos fins de semana. Já minha mãe costumava conversar com a mulher dele.
Dois dias depois, enquanto acompanhava minha mãe na feira, defrontei-me novamente com o vizinho em mais um ato de recíprocos olhares. Parecíamos um com medo do outro. Eu temia contar o caso para alguém. Já o receio dele, acredito, era justamente que eu desse com a língua nos dentes. Só que um não ousava conversar com o outro e ficava aquele clima constrangedor, de olhares questionadores.
Bem, vamos ao finalmente, porque leitor de Internet gosta de texto curto. Um mês depois, ele e a esposa se separaram. Minha mãe disse que ela descobriu que o marido tinha amante. Gente, eu juro. Não fui eu quem contou.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Sob medida

Otávio Nunes

(Pequena crônica cruel da vida, baseada na música homônima de Chico Buarque. Caro amigo Chico, como eu sei que você lê meu blog todos os dias, peço que não me processe por plágio. Mesmo porque não tenho onde cair morto e nada pagarei. Interprete como homenagem a seu talento fora do comum. Tenho crônicas sobre outras músicas de outros autores, também, que publicarei de tempos em tempos.)


Meu amigo, somos produtos do mesmo lixo. Não valemos o grão de feijão que nos alimenta. Só vivemos sob o mesmo teto porque não temos outro e também em razão de que um ainda interessa ao outro. O dia em que acabar esta conveniência é cada um por si. “Igualzinha a você, eu não presto. Traiçoeira e vulgar, sou sem nome, sem lar, sou aquela. Sou filha da rua, eu sou cria da sua costela. Sou bandida, sou solta na vida e sob medida pros carinhos seus.”
Se outro homem me deseja, porque não ir com ele? E você? Mais mentiroso e cafajeste que um parafuso enferrujado. Vagabundo, sem ofício ou vontade, nutre-se de brisa. Mal consegue pagar suas cachaças e seu pif-paf. Mas comigo não tem comida de graça, tampouco roupa lavada. Parecida a você, trabalho não é prioridade na minha vida. Não sou mulher de um só homem e jamais quis ser a única e exclusiva de nenhum infeliz. Ganho todas de você, só perco nos músculo, pois nasci fêmea e você ...
Vivo com você, também, para ter alguém a quem xingar, humilhar, amaldiçoar. De vez em quando, reconheço, você serve até para aquietar meus desejos de mulher. Mas hoje sua covardia superou minhas previsões mais pessimistas. Por isso, imbecil, abaixe este braço, sente-se à mesa e coma o resto que lhe deixei. “Meu amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus. Você tem o amor que merece.”

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Gravata de bolso

Otávio Nunes

Fui convidado recentemente para ser padrinho de casamento de minha sobrinha. Até então, nunca havia passado pela minha cabeça que alguém fosse louco o suficiente para me oferecer tal honraria. Aceitei de bate-pronto, com medo de que ela mudasse de idéia.
O único problema que me ocorreu, depois, foi a necessidade de vestir terno e gravata, porque não tenho este costume, graças a Deus. Mas mantinha uma gravata pendurada dentro do guarda-roupa.
Como há muito tempo não usava tal acessório, pedi a um amigo da redação que me ensinasse a dar nó. Depois da pequena aula, ainda fiquei 15 minutos em frente ao espelho do banheiro treinando a difícil arte de acertar a gravata no pescoço. Fazia e desfazia o nó, fazia e desfazia... Até que o meu chefe entrou no banheiro e perguntou: “Pô meu, enrolar e dar nó é com você mesmo, heim. "Cadê a matéria?”. Tive de parar e voltei ao trabalho, com o cuidado de guardar a gravata com nó feito.
Vou interromper minha historinha para contar a você uma curiosidade sobre este pedaço de pano que os homens amarram no pescoço e ainda se vangloriam pela elegância. A palavra gravata vem de Croácia. Isto mesmo. Se não acredita, dê uma olhada no Google. Na Guerra dos 30 anos, no século 17, na Europa, soldados croatas, com laço no pescoço, lutaram ao lado dos franceses que adoraram o enfeite e o disseminaram pelo mundo.
Pois bem. Ao chegar em casa, guardei a gravata com o nó para usá-la no final de semana, na cerimônia de casamento da minha sobrinha. No dia marcado, tomei banho, me perfumei, escovei o dente, aparei as unhas, engraxei sapato, penteei os parcos cabelos que ainda me restam, vesti camisa de manga comprida, calça social e separei o único paletó que tinha. Só faltava a “croata”.
Ao pegá-la no guarda-roupa quase tive um ataque cardíaco. Estava sem o laço. Desesperado, perguntei para minha mulher o que tinha acontecido. Ela me disse que havia desfeito o nó para passar a gravata “e tirar o amassado”. Meu Deus. Esqueci de avisá-la sobre a necessidade de manter a gravata com nó. ´Tentei sozinho dar o nó, mas tinha me esquecido. Peguei a peça e guardei no bolso do paletó. Quando chegasse à igreja pediria a alguém para fazer o nó.
Ao chegar no local, descobri que minha sobrinha havia convidado mais dois casais para padrinhos. Fiquei decepcionado, pois acreditava ser o único. Eu e minha mulher sentamos na primeira fila e acompanhamos o ritual do casamento.
Quando voltava para casa, enfiei a mão no bolso do paletó e só então percebi que a gravata ficara todo o tempo ali, guardada, sem nó. Fui o único padrinho que não usou a dita cuja. Também, bem-feito!. Quem mandou minha sobrinha convidar um monte de padrinhos.