Otávio Nunes
Fiz uma matéria este mês numa penitenciária feminina, cá, na capital paulista. A pauta abordou um programa de leitura para as presas ministrado por dois bibliotecários, mantidos por uma faculdade privada. Uma atitude interessante e bem-intencionada.
Uma vez por semana, a dupla visita a prisão e lê textos literários ou da imprensa e discute temas da atualidade ou do cotidiano, como família, filhos, crise internacional etc. Também levam música, encenações teatrais e outras coisas, sempre com a participação das presas interessadas. Tudo para estimular leitura e reflexão entre elas. Entrevistei a diretora-geral, a diretora de educação, os dois bibliotecários e quatro detentas partícipes das sessões de leitura. Pena que a frequência ao curso seja muito baixa: mais ou menos 40 mulheres num universo de quase 700. Mas antes alguns pingos no oceano do que baldes de areia.
Sentei-me a uma mesa, por causa do meu bloquinho de anotações, pois só uso gravador por ordem judicial. Tal equipamento é atraso de vida. Repórter tem de guardar informações no bloco e na cabeça. Lembro-me que quando era foca (iniciante na profissão) fiz uma entrevista com gravador. Gente, eu consegui esquecer o aparelho na mesa do entrevistado e voltei de mãos vazias à redação. Durante um mês, fui motivo de chacota no trabalho. Fiquei traumatizado e nunca mais usei gravador.
Voltemos à penitenciária. Eu entrevistei cada uma delas por cinco minutos, mais ou menos. Na verdade, eu estava com pressa porque faltava pouco para o meio-dia, hora do almoço delas. Aliás, naquele dia, elas iriam comer um peixe delicioso, cujo aroma incitava meu apetite. Pois bem, em cadeia geralmente o preso gosta de estar na fila do bandejão logo que começam a servir. Pelo menos foi o que ouvi de funcionários em algumas prisões do Estado em que já estive fazendo reportagens. Por isso, minha pressa se justificava.
A terceira presa sentou-se à minha frente e lhe perguntei, mas não de uma só vez, nome, idade, que tipo de crime o Estado imputou a ela e a pena recebida. Inesperadamente, ela começou a chorar. Uma situação atípica para mim. Já visitei uma dezena de penitenciárias no Estado, sem contar as unidades de menores infratores, sempre a fazer matérias sobre cursos, oficinas de trabalho, de artesanato, culturais e outros projetos de ressocialização do preso. Passei por muitos momentos de emoção, ouvindo homem, mulher, adolescente. Na verdade, era a segunda prisão feminina que eu visitava. No entanto, choro, até então, não. Por instantes, fiquei sem ação e ela, envergonhada, tapou o rosto com as mãos.
Esperei alguns segundos e procurei levantar seu astral. Autoestima é a característica humana mais escassa para quem vive atrás das grades. Disse a ela que não precisava ficar envergonhada. Podia derramar lágrimas à vontade, porque todos nós choramos em determinadas situações. “É sinal que você tem coração”, afirmei, e deu certo. Ela enxugou o rosto com as costas da mão e continuamos a entrevista.
Ela e outras duas colegas que ouvi foram condenadas por tráfico de drogas, a maldição de nossa juventude. A quarta entrevistada, a mais velha delas, cumpria pena por estelionato. Essa penitenciária feminina é de regime semiaberto, em que as presas podem trabalhar fora e dormir na prisão e também visitar parentes em datas comemorativas, como Dia das Mães, Natal, Ano Novo. Na verdade, quase todas estão prestes a ganhar a liberdade, pois já cumpriram a maior parte da pena em outras cadeias, as de regime fechado. Minha amiga chorona talvez volte para sua família ainda este ano.
O contrário já aconteceu, também. O dia em que o repórter chorou. Faz alguns anos, fui fazer matéria numa penitenciária de segurança máxima, no interior paulista, não lembro qual cidade. A pauta era sobre uma oficina de trabalho dentro da unidade. Era uma fabriquinha de cadeira, ou de roupa ou de boné, não me lembro ao certo.
No final da visita, como de praxe em minha forma de trabalhar, ouvi os presos da oficina. Apesar de oferecer apenas umas cinquenta vagas, num universo de mais de mil homens presos, a fábrica também acrescentava alguns pingos ao mar. O trabalhador faturava um trocadinho todo mês, ocupava seu tempo com algo útil, aprendia uma profissão e ainda reduzia sua pena: três dias de trabalho significam um a menos na condenação.
Um deles cumpria pena alta, não lembro, mas devia ser por volta de 20 anos. Estava há mais de 15 na cadeia. Seu crime, latrocínio. Não sou advogado, mas acredito que este ilícito seja um dos mais graves em nossos códigos. O infeliz tinha passado por várias penitenciárias. Era, até, sobrevivente do massacre do Carandiru, triste episódio da cidade de São Paulo ocorrido em outubro de 1992, quando 111 presos foram mortos por forças policiais, numa rebelião. Aliás, o tema virou livro e depois um ótimo filme de Hector Babenco.
Pois bem, o homem tinha mais de 50 anos e trabalhava na oficina. No final da entrevista, perguntei o que faria quando deixasse a cadeia. Ele me disse que não sabia, porque tinha perdido contato com os poucos parentes que deixara no mundo de fora, embora fosse casado e tivesse dois filhos. Há muitos anos não recebia visita, carta ou qualquer demonstração de apreço por parte de parente ou conhecido. Encerrei a entrevista naquele momento. Nada mais havia a perguntar.
Na volta à redação, dentro do automóvel da empresa, a lembrança daquele homem perdido no mundo veio à minha mente. Que futuro ele teria fora das grades? Quem iria esperá-lo na porta no dia em que ganhasse liberdade? Depois de muita pergunta sem resposta, um fio lágrima caiu de meus olhos. O fotógrafo, sentado a meu lado, perguntou o que acontecia. Eu disse, então: “um cisco caiu no meu olho”.
Um outro fato me chocou deveras, embora sem direito a choro, por parte do entrevistado ou do perguntador. Em matéria que fiz numa unidade de menores, que em São Paulo chama-se hoje Fundação Casa, a antiga Febem, perguntei a um garoto porque roubava. Envergonhado, ele me respondeu que começou a surrupiar o bem alheio por sugestão e insistência de sua mãe, que o incitava com o pretexto de não ter o que comer em casa. Incrédulo, questionei a veracidade da história com um dos professores que trabalhavam com o grupo de adolescentes. Ele confirmou. O menino roubava a pedido da mãe.